A culpa não era dos Montecchio nem dos Capuleto. Era de uma bomba de ocitocina e dopamina, combinada a um cérebro com córtex pré-frontal ?pouco conectado?, que, traduzindo, provocou uma mazela bem conhecida chamada paixão avassaladora. É por isso que a história de Romeu e Julieta, escrita no fim do século XVI por William Shakespeare, é tão atual que poderia muito bem ter acontecido ontem, no Leblon ou na Tijuca. Bastava para isso que dois vizinhos alimentassem alguma picuinha ? um Montecchio que fizesse barulho de madrugada ? e que seus filhos adolescentes se enrabichassem um pelo outro. No ano em que se comemoram quatro séculos da morte do dramaturgo inglês, um time de estudiosos e um grupo de garotas ? que ilustram a capa e as páginas desta edição ? traçam um perfil das adolescentes de hoje e apontam traços comuns ou não com a romântica Julieta, que tem 13 anos na história. A conclusão é de que as meninas dos dias atuais são iguais, mas diferentes… Confuso?
É simples: elas têm uma criação mais plural, usufruem de liberdades conquistadas por gerações passadas, estudam e querem independência econômica, mas, tal qual Julieta, continuam sonhando com um príncipe encantado. Ágatha Marinho, Branca Grinberg-Weller, Carolina Fabbriani, Evelyn Gomes, Lara Arkader, Marianna Nystrom, Rita Germano e Rosa Svartman ? todas entre 13 e 15 anos, moradoras das zonas Sul, Norte, Oeste e da Baixada Fluminense ? são reflexo disso. Elas têm realidades muito diferentes, mas também nutrem anseios, prazeres e angústias em comum.
Na Zona Sul, o programa é praia, shopping e cinema. Em outras regiões e na Baixada, as praças são um ponto importante de lazer e de encontro com os amigos. Algumas têm dezenas de atividades depois da escola e há outras que gastam cada minutinho de seu tempo estudando, como Rita Germano, que pretende entrar para a faculdade de Medicina ? apesar de seus 14 anos, ela tem toda a carreira planejada na cabeça. A maioria quer casar (bem mais tarde) e ter filhos. Mas é unânime a vontade de viajar, para onde quer que seja, entre o término da escola e o início da faculdade. Marianna Nystron, de 13 anos, por exemplo, quer passar um tempo na Suécia.
A hora para voltar das festinhas ? agora chamadas de sociais ou resenhas (vide vocabulário abaixo) ? passou para as 3h da manhã, isso, é claro, quando não tiver prova no dia seguinte. As meninas param de brincar de boneca com uma média de 9 anos, beijam pela primeira vez com uns 12 e continuam de olho nos meninos mais velhos. Segundo elas, os de 16 são menos ?bobões?.
E por falar nisso, Daniel Radcliffe, o Harry Potter, não está mais com essa bola toda. MC Biel, Justin Bieber e Ian Somerhalder preenchem os corações e sonhos das meninas. Elas pintam o cabelo de rosa, querem colocar piercing e reclamam que os meninos ?podem mais? do que as meninas. Outra queixa em comum é a de que o bullying enfraqueceu só dentro da escola. Na internet, ele continua firme e forte.
A escritora de livros infantojuvenis Thalita Rebouças ajuda a desvendar o enigma da Julieta do século XXI. Há 16 anos, ela viaja pelo Brasil e por Portugal para promover seu trabalho, conhecendo pelo caminho muitas de suas leitoras. Para a autora, a menina de 13 anos de hoje não é diferente da que ela foi com esta idade ou da que foi sua avó. Thalita diz que a essência é a mesma, o que mudou foi o acesso à informação.
? Ela não se vê mais como criança, mas também não se sente muito adolescente. E, nesse meio de caminho, tem o dente torto, as espinhas, as angústias. A menina de 13 anos é intensa e vê tudo com uma lente de aumento. Defeitos, qualidades, insatisfações e medos ficam superdimensionados. Isso não vai mudar. É a essência dessas garotas. Por outro lado, na minha época, só tinha uma revista para adolescentes. Hoje, elas têm o mundo na palma da mão.
Talvez por isso, elas estejam perdendo a meninice um pouco mais cedo. Thalita conta que percebe diferenças entre as garotas conforme o bairro em que vivem e arrisca até a traçar um mapa teen do Rio: para ela, no Leblon, por exemplo, a menina ?está louca para crescer?, enquanto a da Tijuca ?é um pouco mais infantil?.
? É curioso, mas é lógico que não é um estudo, apenas minha opinião ? diz. ? Já escrevi até uma crônica sobre um episódio que aconteceu em São Paulo. Uma garota, de salto alto e maquiadíssima, perguntou a minha idade e se eu já tinha feito plástica. Depois, disse que com 18 anos queria fazer uma ?lipinho? (lipoaspiração) e botar peito. Assim, no diminutivo, como se fosse bonitinho. Com 13, elas ainda não estão tão preocupadas com o espelho, mas, em pesquisas que fiz, vi que já pararam de brincar de boneca há um tempo, com uns 8 ou 9 anos.
Para a antropóloga Mirian Goldenberg, não existe mais um perfil único de adolescente. Isso porque não são mais criadas de forma tão semelhante como acontecia antigamente. Então, há aquela que pratica esporte, a que curte rock, a que adora ler. E há o que a professora da UFRJ chama de ?menina cor-de-rosa?. Este modelo, muito específico deste século, sente uma exigência de se enquadrar dentro de padrões de moda, corpo e comportamento. Por outro lado, Mirian diz que os próprios pais, de uma geração mais libertária, querem que as filhas sejam mais livres em suas escolhas. Basta ver alguns movimentos organizados, principalmente fora do país, que lutam, por exemplo, para alterar as medidas da boneca Barbie. As próprias crianças e adolescentes, porém, teriam resistência a essas mudanças.
Para Mirian, a explicação dessa relutância está na forma como a educação tem chegado nas últimas décadas. Se antes as referências vinham da família e da escola, hoje ela se dá muito mais por seus pares (neste caso, os amigos) e pelos meios de comunicação.
? Quando sua mãe fala, é natural da idade que você se rebele. Mas quando são suas amigas ou a mídia, é mais complicado. Você nem sabe se pode se rebelar ou contra quem. É uma influência invisível, um padrão internalizado de uma forma mais suave, que se transforma em um desejo interno ? reflete. ? Como você vai contra a novela, o filme ou a sua amiga? Você só consegue fazer isso mais velha. O momento mais libertário não é na adolescência, como se pensa. É com 40, 50 anos, quando você diz: ?Chega, não aguento mais!? Mas é claro que essa faixa etária tem um nível de autonomia que você não tem aos 13 anos.
Muito provavelmente por pressão da sociedade, há um leque cada vez maior de alternativas para o padrão hegemônico. No universo das animações, para se ter uma ideia, a personagem do filme ?Valente? é uma menina de cabelo indomável, que não consegue se entender com a mãe e que se nega a casar com um marido arranjado. Outro exemplo é a princesa Elsa, que dispensou o príncipe encantado para resolver os seus problemas e inspirou a comunidade gay americana a criar a hashtag #GiveElsaAGirlfriend. A ideia é que os estúdios Disney transformem a moça na primeira princesa lésbica da História.
As pesquisas de Mirian, aliás, mostram que as meninas e os meninos também têm iniciação sexual com idades parecidas, em torno dos 16 anos. As relações também não são sempre com o mesmo menino, mas elas continuam fantasiando, como antigamente, com um casamento estável e com um ou dois filhos. É o que a antropóloga chama de ?capital marital?.
? Isso é muito forte na cultura brasileira. Elas não precisam mais casar virgens, fazem faculdade, trabalham, querem independência econômica, mas, apesar de tudo isso, querem casar e ter filhos. Não querem sair transando com todo mundo, como os meninos. Num mercado tão amplo, você ser escolhida por quem você escolheu continua sendo importante. Mas atenção: a Julieta de hoje quer muito mais ser amada pelo Romeu do que morrer amando o Romeu. É uma diferença, né? Talvez estejamos mais narcisistas ? diz, achando graça.
Na Alemanha, onde a antropóloga também coordena estudos, os valores são bem diferentes, e o marido não é considerado ?uma riqueza?. Lá, tanto faz ser casada ou ter filhos: mais vale a independência individual da mulher. No Brasil, por outro lado, elas se sentem obrigadas a justificar o tempo todo para a sociedade a razão de não terem se casado.
? É um paradoxo. Gilberto Freire dizia que os contrários convivem bem no Brasil. E é verdade. Uma intelectual pode querer fazer cirurgia plástica, uma judia pode fazer oferenda para Iemanjá e uma menina pode sonhar em ser bem-sucedida profissionalmente e ter filhos e marido ? completa.
Outra observação curiosa é de que, no Brasil, a mãe continua sendo um modelo. Mas, diferentemente do que acontece em países como a França, a filha também passou a ser exemplo para a mãe e para as avós. Nesse ponto, essa democratização dentro de casa segue muito mais o padrão americano do que o europeu.
A psicóloga e neurobióloga da aprendizagem Marta Relvas, autora do livro ?Neurociência e educação: gêneros e potencialidades na sala de aula? (editora Wak), diz que esse espírito contestador também pode ser observado nas escolas. Com 38 anos de experiência com essa faixa etária, ela diz que os jovens não recebem mais passivamente qualquer tipo de orientação, como acontecia com outras gerações. E isso tem a ver com o modo como a informação chega ao cérebro.
? Esse cérebro moderno é híbrido, ou seja, hiperconectado. Por isso, eles querem contextualizar tudo. Por quê? Para quê? É diferente da minha faixa etária, que não perguntava. Nossa biologia, porém, é a mesma. Só mudamos o processo social. No fim, ainda pensamos num acasalamento saudável ? compara.
Marta lembra que isso acontece, principalmente, porque os hormônios que fuzilavam Julieta há 400 anos são os mesmos que provocam as dores e as delícias nas adolescentes contemporâneas.
? A dopamina é um neurotransmissor que provoca uma paixão cega. E ainda tem a ocitocina, que é um hormônio que produzimos quando estamos apaixonados. Ela deveria ser ?filtrada? numa área cerebral que nos torna mais racionais, o córtex pré-frontal. O problema é que essa região está em franca evolução aos 13 anos. Há estudos que dizem que, somente aos 28, ela se conecta com o processo de aprendizagem cognitiva.
É por causa dessa bomba hormonal que, quando jovens, somos muito mais paixão do que razão ? e, quando velhos, nos perguntamos: ?Como fui fazer isso??
? É porque a cabeça não tinha filtro mesmo! Fisicamente, os neurônios não estavam conectados. Sem uma base psíquica e social, sem orientação dos pais e da sociedade, somos meramente matéria biológica com um cérebro que quer recompensa o tempo todo ? diz.
Apesar de seus neurônios desconectados, Julieta é uma das figuras femininas mais fortes do escritor inglês, como conta o poeta, crítico e tradutor de Shakespeare Geraldo Carneiro. Dona de uma sabedoria surpreendente, é ela, por exemplo, quem conduz toda a história de amor com Romeu. Inclusive, nas iniciativas e sugestões do primeiro beijo e do casamento.
? Nelson Rodrigues dizia que, aos 18, o homem não sabe nem dar bom dia para a mulher, e que todos eles deveriam nascer com 30. Julieta tinha uma superioridade intelectual sobre Romeu, parecida com a das meninas de hoje. Em matéria de inteligência, não há igual. Às vezes, até para se precaverem das tolices dos meninos, que exibem uma astúcia que eles não têm ? argumenta.
Para Carneiro, todas as mulheres de Shakespeare têm senso de humor, sensibilidade exacerbada e uma capacidade de se firmar diante do mundo e arquitetar o próprio futuro. Julieta mesmo enfrentou a tirania dos pais em pleno século XVI e fez uso da própria Igreja Católica para (tentar) alcançar os seus objetivos.
? As meninas hoje são muito astuciosas, como ?O Exterminador do Futuro?: leem 60 hipóteses numa tela. Os meninos veem duas, no máximo ? diverte-se.
Mas o que as meninas acham da Julieta, hein?
? Hoje em dia, isso não teria acontecido, óbvio. Atualmente, se as famílias não se gostassem, eles iriam namorar de qualquer jeito. É só sair de casa, mudar de país e falar com a mãe por Skype ? simplifica Lara Arkader, de 14 anos, resolvendo o dilema com 400 anos de atraso.
LÉXICO TEEN
Resenha: Grupo de amigos que se encontra para
conversar.
Social: Festa com ingresso, geralmente marcada pelo
Facebook.
Churras: O famoso churrasco.
Lek: Substitui o ?cara?.
Ty: Lê-se ?têi? e significa ?muito legal?. Exemplo: ?Vai ao
cinema? Ty!?
Tipo: É usado no meio de qualquer frase. Virou uma ?vírgula
falada?.
Suave: Tranquilo.
Se pá: Talvez.