RIO ? Ao entrar em cena como o protagonista de ?Gisberta?, amanhã à noite, Luis Lobianco não irá representar a personagem-título: a transexual brasileira Gisberta Salce Junior, morta em 2006 na cidade do Porto, em Portugal, após ser torturada durante sete dias por 14 menores de idade. Na peça, idealizada por Lobianco, o ator evitou fazer do teatro um meio de materializar alguém que foi violentamente retirada da existência. Ao contrário, o que busca é tornar palpável o sentimento de ausência e, assim, tornar viva e presente a sua história.
? Ao iniciar esse projeto, a primeira coisa que decidi foi não interpretar ou me colocar na pele da Gisberta ? diz o ator. ? Não a interpreto por uma escolha artística, pois sabia que eu seria mais contundente e convincente como um contador. Afinal, como ela foi retirada do mundo assassinada, não deixou testamento, memórias, nada. Então só Gisberta poderia falar por si. A verdade dela foi embora com ela. Evitei essa tentativa, e foquei em fazer reviver a sua história.
Em cena, Lobianco empresta seu corpo e voz a diversos personagens ? alguns inventados e outros reais, como amigos e familiares ? que teriam conhecido ou convivido com a Gisberta real. São essas vozes, organizadas em dramaturgia de Rafel Souza-Ribeiro, que conduzem o espetáculo e recriam em cena a trajetória da transexual brasileira, prostituta e soropositiva, que se tornou ícone da luta contra a transfobia em Portugal e, ao mesmo tempo, exemplo do descaso brasileiro sobre aspectos fundamentais dessa história ? o traslado do corpo de Gisberta não foi pago pelas autoridades brasileiras, mas por seus amigos e familiares.
? O caso de Gisberta não é conhecido por aqui e decidi que ela vai reviver a partir da arte e será amada pelo público ? diz o ator. ? E, para isso, nos dedicamos a contar essa história, sem que eu precisasse vivê-la em cena.
Em cena, a direção de Renato Carrera explora as potencialidades artísticas do ator, levando-o a transitar entre diferentes vozes e registros interpretativos. Se em conteúdo ?Gisberta? foca na vida de uma transexual e se abre ao debate sobre identidade de gênero, enquanto forma ela toma a liberdade de ser uma peça ?transgênero?, que transita por diferentes gêneros teatrais em cenas trágicas e cômicas, passadas nos cabarés da noite do Porto ou na corte da Justiça portuguesa.
? O fator Lobianco, ou seja, ter um ator de inúmeras capacidades, me levou a trabalhar em diferentes camadas e nuances ? diz Carrera. ? Em cena ele é cantor, apresentador de cabaré, cômico, ator dramático… Vive tudo isso, sempre a serviço da história, ao que é necessário.
?Gisberta? é a primeira encenação profissional brasileira a recriar essa história ? em Portugal houve uma montagem, em 2014, interpretada pela atriz Rita Ribeiro. Além de tornar a vida de Gisberta mais conhecida por aqui, a peça ecoa discussões públicas levantadas por movimentos contra a transfobia no Brasil e, como resultado, expõe o fato de o país não contar com uma lei que torne a transfobia um crime ? segundo pesquisa da Transgender Europe (TGEU), o Brasil responde por 42% dos 295 casos de assassinatos de pessoas trans registrados em 2015, o que faz do país o que mais mata trans e travestis em todo mundo.
? Enquanto em Portugal Gisberta virou ícone da luta contra a transfobia e, a partir do seu caso, o país avançou na conquista de direitos aos transexuais, o Brasil anda na contramão, e segue um dos países que mais comete crimes de transfobia e homofobia ? diz o ator. ? Se ainda não conseguimos mudar as leis que não nos protegem, que a justiça seja feita no teatro, com música e luzes de cabaré.
Em Portugal, no ano de 2016, quando se completou uma década da sua morte, Gisberta foi amplamente lembrada através de várias reportagens. Foi uma delas que chegou aos olhos de Lobianco. O ator estava de férias, descansando das gravações do coletivo Porta dos Fundos, canal virtual pelo qual se tornou conhecido, quando pôs um disco de Maria Bethânia para tocar, e num dado momento, a ?Balada de Gisberta? chamou sua atenção. No Google, digitou Gisberta, e em poucos cliques uma história imensa e desconhecida se transformou, naquele instante, no seu primeiro grande projeto autoral.
? Há um bom tempo eu vinha pesquisando, lendo textos, mas nunca acontecia, até que no meio do ócio, que é quando a gente consegue perceber melhor as coisas, me veio essa história ? conta. ? Li uma reportagem portuguesa que me impressionou muito, entrei em contato com a jornalista, e foi através dela que pude acessar personagens importantíssimos dessa história.
Entre eles, os familiares de Gisberta. Ao lado da produtora Claudia Marques, Lobianco viajou para São Paulo, onde se encontrou com as três irmãs de Gisberta e quatro de seus irmãos. Recebido com cartas, fotos, boa comida e relatos pessoais, começou ali a sua criação. Incentivado pela família, embarcou para Portugal, onde pôde conhecer de perto os lugares onde ela viveu e foi morta, assim como teve acesso ao processo judicial que detalha as etapas do crime. A partir da reunião desses dados ?Gisberta? se tornou uma peça sobre memória, afetos e (in)justiça, que entremeia histórias de família, casos noturnos e relatos de um crime.
? Encontrar a família da Gisberta foi fundamental para perceber que os afetos e as lembranças precisavam estar na peça, assim como as histórias da noite e do crime ? diz.
Em sua primeira metade, a peça repassa a infância e a adolescência da personagem: sua decisão de tornar-se mulher trans, a acolhida da ala feminina da família, um episódio de agressão envolvendo seu irmão mais velho, uma série de assassinatos de trans no Brasil nos anos 1970, até a sua decisão de, aos 18 anos, deixar o país rumo a Paris, em 1979, e depois, para o Porto, onde viveu a noite, o sexo, as drogas, até adoecer, de Aids e depressão, e definhar vertiginosamente até o ato final de agressão que encerrou sua vida. É nesse ponto que ?Gisberta? deixa de ser uma narrativa biográfica com flertes com musical e se torna uma peça-documentário de contornos policiais e jurídicos, e se realiza, por fim, como um contundente manifesto contra a intolerância e a injustiça.
? A justiça portuguesa não reconheceu os menores como assassinos, mas como agressores ? conta Lobianco. ? É por isso que essa história precisa ser recontada e, sobretudo, continuar viva.
Serviço ? ?Gisberta?:
Onde: CCBB ? Rua Primeiro de Março, 66 (3808-2020).
Quando: Estreia amanhã. Qui. a dom., às 19h30m. Até 30/4.
Quanto: R$ 20.
Classificação: 14 anos.