RIO ? Em pleno século XVIII, um tenente luso-brasileiro é enviado a Londres para investigar o mistério em torno de um livro inglês obsceno contrabandeado em massa no Brasil. A premissa do recém-lançado ?Homens elegantes? (Rocco, 576 páginas, R$ 54,90), novo romance do gaúcho Samir Machado de Machado, traz tudo que um bom livro de aventura exige: trama instigante, contexto histórico e cenas de ação ? incluindo duelos de espada. Mas a obra também traz um elemento incomum para o gênero: um herói gay, cujo par romântico é um padeiro e cujo principal inimigo se chama Conde Bolsonaro ? óbvia alusão a um polêmico político brasileiro, muito criticado pelos movimentos LGBT.
Mesmo usando esses ingredientes, ?Homens elegantes? não é vendido como uma ?publicação gay? nem se volta para um nicho específico. Ao contrário. O tema surge naturalmente em uma história escrita para um público amplo e irrestrito. Seu lançamento, aliás, se dá no mesmo semestre em que a Companhia das Letras coloca no mercado quatro romances com protagonistas gays: ?Simpatia pelo demônio?, de Bernardo Carvalho; ?O amor dos homens avulsos?, de Victor Heringer; ?Meia-noite e vinte?, de Daniel Galera; e ?O tribunal de quinta-feira?, de Michel Laub. Os três primeiros já saíram, e o último está previsto para o próximo mês. Com exceção de Bernardo Carvalho, todos os autores escrevem sobre a homossexualidade pela primeira vez e, apesar de muitos deles serem geralmente associados a um universo hétero, tentam abordar o tema com o maior desembaraço possível.
A profusão de personagens gays na literatura mainstream brasileira, protagonizando livros que escapam de nichos e rótulos, seria um sinal de que o universo LGBT está se tornando algo natural em nossa produção? Para Machado, a chegada quase simultânea desses livros ao mercado não é uma mera coincidência.
? A saída do nicho talvez esteja ligada ao momento, com uma geração mais nova, a dos millenials, que não tem problemas com o tema e quer consumi-lo; e uma geração mais velha, que cresceu numa realidade onde isso era quase um não assunto, e agora talvez tenha maturidade para discutir o tema sem recorrer a códigos ou sensacionalismos moralistas ? avalia o autor, que no mês passado ministrou uma oficina de introdução à literatura gay e ficou surpreso com o ecletismo dos seus alunos.
Até pouco tempo atrás, quem escrevesse sobre homossexualidade corria o risco de ter sua obra reduzida à etiqueta de ?literatura gay?. Um rótulo que, segundo Machado, perde cada vez mais sentido nos dias atuais. A ideia de pôr um herói gay em seu livro, conta Machado, surgiu como uma resposta a uma cena do romance ?As horas?, de Michael Cunningham, onde um ator e um produtor de cinema discutem se o público estaria preparado para aceitar um filme de ação com um protagonista homossexual. Interessava-lhe, portanto, explorar esse tipo de experiência dentro dos códigos específicos de um romance de aventura.
? Em Londres, encontrei uma prateleira de ?literatura gay? e tinha lá William Burroughs, Christopher Isherwood e mais um monte de notórios autores homossexuais. Mais, adiante, achei outras prateleiras com livros de ?ficção histórica gay?, ?literatura policial gay?, assim se subdividindo ao infinito ? conta. ? Os mesmos livros poderiam estar em qualquer outra prateleira. É só um rearranjo específico, comercial.
Amigo de Machado, Daniel Galera assina a orelha de ?Homens elegantes? e também acaba de criar, pela primeira vez, um personagem gay. Ele explica que seu Emiliano, de ?Meia-noite e vinte? (lançado em setembro), é um tipo de homossexual ?pouco representado em livros e no cinema?. Longe do clichê do gay afeminado, surgiu de anos de reflexão acerca do ?significado de virilidade?.
? Em minha adolescência, era impensável associar o conceito de virilidade a um homem homossexual. Hoje eu entendo como ela é uma característica que transita livremente entre sexos e orientações sexuais ? explica Galera. ? Não resolvi do nada fazer um personagem que fosse homossexual. A percepção da minha geração de como se posicionar em relação a isso mudou muito dos anos 1990 para cá.
O autor acredita que, embora o preconceito contra os homossexuais e outras minorias ainda seja um problema, alguns passos foram dados no sentido de uma naturalização do assunto, pelo menos na literatura.
? Já se pode escrever um personagem assim um pouco mais à vontade, tratar do tema da homossexualidade como uma coisa comum, sem querer provar alguma tese, sem representar um grupo de pessoas de uma forma artificial ? opina Galera.
Editora na Rocco, que publica o livro de Samir Machado, Vivian Wyler não tem dúvidas: a escolha da temática homossexual e sua abordagem por um escritor que não partilha, necessariamente, da opção sexual de seu personagem é, sim, um reflexo da aceitação do tema pelo mainstream e pelo público. Ela lembra que, há alguns anos, as editoras ainda falavam em ?literatura de nicho? e em usar selos exclusivos. Livros como ?A cidade e o pilar?, de Gore Vidal, ou ?Maurice?, de E.M. Forster, vendiam bem, mas ?sua chancela para a estante geral era a delicadeza da abordagem, mais sensível que explícita, mais insinuada?.
? A voz corrente era: o livro é bom, e por isso será aceito, apesar do elemento gay, considerado uma espécie de contrapeso, de contrabando de conteúdo ? diz Vivian. ? Para uma obra radical como a de Jane Bowles ou Radcliffe Hall ou Jean Genet, ou mesmo Manuel Puig, havia 100 outras em que o elemento gay era uma pitada, um chiste, no máximo uma perversão, como na série vampiresca de Anne Rice. O que mudou foi que agora todo mundo quer ler o livro, mesmo já sabendo que é LGBT. E já sabendo que vale a experiência, não mais interdita ou furtiva.
Autor de ensaios sobre a representação gay na literatura brasileira, o crítico Silviano Santiago acredita que a homossexualidade não se normaliza. É o “olhar e a mente das pessoas que podem mudar”. Ele cita um neologismo que apareceu recentemente em um artigo do ?New York Times?: bromosexual. O termo indica uma nova tendência, a da conexão fraternal entre homens gays e héteros, com a possibilidade de criar vínculos de amizade apesar dos interesses sexuais distintos. Algo raro até dez anos atrás.
? Estaríamos diante de um novo paradigma no relacionamento entre homo e hétero? ? indaga o crítico. ? Talvez a nova literatura brasileira esteja se encaminhando para outra apresentação da trama e do personagem homossexual. O rapaz ou o senhor gay já não se sente mais inibido no seu desejo por uma vida social e política mais plena do que a demarcada de modo estreito pelo preconceito e pelo medo.
Autor de ?O amor dos homens avulsos?, lançado em agosto, Victor Heringer fez questão de que a história de amor de seu romance fosse entre dois meninos. Segundo ele, mesmo os ficcionistas ligados a uma masculinidade mais tradicional estão começando a experimentar uma maior alteridade na escrita. O que pode em breve provocar um debate complexo sobre o lugar de fala.
? Embora não haja assunto interditado, ainda existe um problema de representatividade no meio literário ? diz Heringer. ? Entrar no mundo do outro é um modo de amar, é um dos papéis da ficção. Mas a crítica que se poderia fazer a mim, escritor branco, semi-heterossexual e de classe média, que se coloca no lugar de fala de grupos oprimidos, tem sua validade. Às vezes, normalizar é também um modo de calar. Afinal, foram homens que, há séculos, vinham escrevendo sobre ?a alma feminina?. É contra essa normalização que eu tenho que lutar.