RIO ? Tão emblemática quanto a protagonista de ?A vida invisível de Eurídice Gusmão?? (Companhia das Letras), romance de estreia da escritora Martha Batalha, é outra personagem do livro, a Das Dores. A certa altura da história, Martha narra como Afonso, filho de Eurídice, faz sexo com a empregada, que aceita a situação candidamente sob ameaça de perder o emprego: ?Para Das Dores uma saia levantada a mais ou a menos não fazia muita diferença. Que mal havia em aliviar as angústias do menino? Ruim foi a sua primeira vez, porque aos 13 anos não sabia de muito e tentou resistir, voltando para casa com manchas de sangue que não eram apenas pelo fim da virgindade??. O estupro sempre existiu e foi aceito, de certa forma. É um pouco triste e surpreendente para mim fazer um livro que se passa em 1950 e que ainda é tão atual
? É uma breve passagem. Das Dores não se incomoda com o fato, lembra apenas que sua primeira vez, aos 13 anos, foi ruim. O estupro sempre existiu e foi aceito, de certa forma. É um pouco triste e surpreendente para mim fazer um livro que se passa em 1950 e que ainda é tão atual ? disse a autora, em entrevista por telefone ao GLOBO, de sua casa, na Califórnia.
?A vida invisível de Eurídice Gusmão?? acompanha a trajetória de uma típica dona de casa carioca que vive de acordo com o que se espera dela em sua época: servir o marido, cuidar dos filhos e manter a casa funcionando. Lançado semanas antes do estupro de uma adolescente de 16 anos, no Rio, o livro aborda temas como o machismo e a cultura do abuso. O centro da narrativa, porém, está na forma como a geração de Eurídice e de sua irmã, Guida, encarava os papéis de homens e mulheres dentro de uma sociedade patriarcal:
? A geração dos nossos pais e avós teve poucas oportunidades, eles eram pessoas muito estigmatizadas, viviam a partir de dogmas. O mais interessante é que até pouco tempo atrás essas coisas não eram muito discutidas. As pessoas aceitavam tudo como sendo normal.
Martha conta que se inspirou em seu universo familiar e no de conhecidos. Nascida no Recife há 42 anos, ela cresceu na Tijuca, Zona Norte do Rio.
? Essa história é muito autobiográfica. Todas as coisas que acontecem com Eurídice e a irmã dela aconteceram com a minha família e com pessoas próximas. Eram situações muito comuns no bairro onde vivi.
Lançado no ano passado na Feira de Frankfurt, o livro teve seus direitos de tradução comprados por editoras estrangeiras antes mesmo de ser adquirido pela Companhia das Letras. Com tiragem inicial de 5 mil exemplares, a primeira edição brasileira se esgotou, segundo a autora. Traduzido para 12 países, será lançado em outubro na Alemanha e na Itália.
KARIM AÏNOUZ VAI DIRIGIR FILME
Os direitos de adaptação para o cinema já foram adquiridos pelo produtor Rodrigo Teixeira para uma produção a ser dirigida pelo cearense Karim Aïnouz, de ?O céu de Suely?? (2002) e ??Praia do futuro?? (2014).
? Minha única recomendação foi manter o humor e evitar essa coisa de homem batendo em mulher ? ela diz.
Teixeira afirma que o projeto está em fase de desenvolvimento de roteiro e que as filmagens devem começar em 2017:
? Fiquei impressionado com a forma como o livro analisa a condição da mulher naquela época. Logo vi um filme ali.
Atualmente, Martha trabalha no segundo romance, que se desenrola ao longo de cem anos. O início coincide com a construção do Castelinho de Ipanema ? como ficou conhecida uma das primeiras casas do bairro, erguida na Avenida Vieira Souto no ano de 1904 ? e o tema é a falta de memória dos brasileiros.
? Vai ser uma saga familiar. Esse castelo tem um papel importante, porque quase ninguém mais se lembra dele e faz parte da nossa história.