Cotidiano

Leia poema inédito de Catarina Lins

MANAM
de Catarina Lins

?

Para mim você veio da Índia ou de um país distante, escuro, marrom, para mim você é deserto e mar e tudo o que é mistério. [?]

Eu deveria ter um castelo para nós e ir buscar você para mim, para que você, meu enfeitiçado senhor, possa ficar dentro dele; lá dentro teremos muitos tapetes e música, e inventaremos o amor.

(bachmann, em carta)

??

1.

manam é uma ilha no mar de bismarck

manam, vista do espaço, parece uma rodela

manam

evacuada

por causa da periculosidade vulcânica e você

não acha isso

Arte

e: ter sido chamada de repolho

por uma criança árabe?

acha isso

arte?

e te escrever um email

do quarto número 108 do hotel LeMeridien, no Cairo,

depois de deitar no banco de um vestiário em chamas e ouvido

a canção

(e: quando você tiver um dia um filho, de nome Nuiya, vai criá-lo

com ou sem

gênero?)

e: antes da jacuzzi, em vários lugares

o dia começando às 6h, por lá, como quase todos os dias

aqui,

e quando o guia (Mohammed) mandasse ligar

nos acordando para as primeiras

orações do dia e:

transformar os emails

em pirâmides

os balões

em poemas, as cenas

de felicidade

de qualquer maneira

em prensa francesa

ou

no canto da casa que não tem wifi

calma

esta é só uma carta

na verdade escrita em 3

partes

?

2.

agora é noite, no dia seguinte,

em Alexandria ?

o fim da carta escrito quase todo ele (desculpa)

no dia 20 de janeiro, 11h01 horário de brasília

eu quase sempre não tendo tempo para isso lá, porque

eu quase sempre chegava exausta e ?

eu te contei da crise de choro que tive em cima de um burro?

a crise em frente à pirâmide, em cima do burro, em Sachara?

a crise: um pouco antes de entrar na pirâmide pra baixo, pra dentro da terra, com a ideia de que

as pedras

desmoronariam todas

em cima de mim e você e depois da falta

de ar? tudo isso logo depois da crise no burro porque

um vendedor me convenceu a subir (eu não queria)

e o choro durante o caminho todo dizendo: desculpa, burrinho, desculpa ?

e que eu também comprei essências e tâmaras

para fazer o Filindeu

que ela puxa e dobra

e puxa e dobra

a massa

de semolina

de 256 tiras

idênticas

para fazer o filindeu

e que tudo isso é tão fácil e simples que

nos últimos 200 anos ele só foi servido para os fiéis

que completaram a peregrinação de 33 quilômetros, a pé ou em burro,

durante as festas de São Francisco

e ? porra, crânio:

é CLARO Que

EU PENSEI em ti EM CIMA do Burro

QUANDO eu COMPREI PRA VC UM BURRO DE ALABRASTRO

E TE CONTEI AS HISTORIAS Do BURRO!

EU SEMPRE PENSO EM VC SENTADO NUM BURRO QUANDO eu VEJO

você

sair e voltar da água,

voando.

3. Asquenazes /

espalhados no mundo

após o H.,

como o queijo

quark

?

P: O que é

um Meridiano?

R: é uma ligação entre dois polos que atravessa

diferentes territórios, estabelecendo, em sua circularidade, um encontro entre heterogêneos.

Para dizer de um EU

que se dirige a um TU, um outro,

para poder encontrar-se

consigo mesmo, às

margens

do nilo e como

a personagem de Büchner que

no dia 20 de janeiro foi para a montanha

?para se encontrar?

?

você sabe onde ficam os países

e os mares

e as grandes medidas

criadas

pelo criador de medidas:

a lontra canadense

a lontra neotropical

a lontra europeia

a lontra de nariz peludo

a de pescoço pintado

a lontra do congo

a lontra do cabo

a lontra-anã-oriental (mesma coisa que a lontra indiana)

e que isto é

fundamentalmente,

ruído?

i.e.: o silêncio

? na verdade você foi chamada de

[ ]

na verdade

foi como se experimentasse a guerra antes

que ela acontecesse

ou: The happy way Hope built

his house

E: antes, houve outra vez, num poema

que através da língua hebraica te veio a palavra

Luz

e que: para ele, no saguão, no entanto, não havendo

calado

demarcava, sim, o silêncio

nos poemas endereçados

às geleiras

(o que nos fez lembrar de você

antes

da guerra)

Catarina Lins (1990) nasceu em Florianópolis e vive no Rio. Formou-se em letras pela PUC-Rio e atualmente cursa mestrado na mesma instituição. É autora de “Músculo” (7Letras, 2015), “Parvo orifício” (Garupa, 2016) e “O teatro do mundo”, ainda inédito.