Cotidiano

Justiça restaurativa: um novo conceito para “sanar” conflitos

Cascavel – Em tempos em que as estatísticas do crime não param de crescer, surge um novo conceito para resolver conflitos entre infrator e vítima. Pela Justiça comum e na Lei de Execuções Penais seria inimaginável unir em um mesmo espaço ofensor e ofendido para tentar restaurar o que foi “quebrado”. Mas que tal usar a Justiça para resolver o conflito e ainda pacificar? Conceito ainda difícil diante de uma sociedade moldada para vigiar e punir, mas um braço da Justiça tem dado certo e trazido resultados inimagináveis.

A prática da Justiça Restaurativa ainda é recente, mas os resultados são fundamentais em duas frentes: numa para que a vítima possa superar traumas e desafetos, e noutra para que o agressor pratique a empatia, coloque-se no lugar do outro e não reincida. Os resultados? Os melhores possíveis, até agora. Aqui, no entanto, vale um adendo: essa forma de conciliação não é a única medida jurídica adotada e não pode partir do conceito da impunidade. Mas no caminho da restauração tem juiz aplicando “pena” para vizinhos com desavenças, cuja “punição” é tomar tererê ou chimarrão juntos uma hora por dia. Resultado: já tem em muitas pessoas se tornando bons amigos.

A justiça menos punitiva e que constrói laços já é prática no Cense 2 (Centro de Socioeducação) em Cascavel, onde estão os menores infratores em internamento.

Infrator e vítima: andando pelos mesmos caminhos

Segundo a assistente social Sheila Tatiana Lautert Guimarães, que trabalha no Cense 2 de Cascavel, a Justiça Restaurativa vem sendo aplicada após a designação de medidas socioeducativas. “O maior objetivo é trabalhar as relações humanas tanto com a família quanto entre os próprios adolescentes e, claro, com a vítima”.

Dentro das práticas há círculos restaurativos em dinâmicas que unem os dois lados. Tudo de forma orientada de modo que um possa se colocar no lugar do outro para que todos entendam melhor o contexto de como tudo aconteceu e, melhor, de como não voltar a conflitar. “É uma forma de fazer a ressignificação da realidade de onde se está inserido”, explica.

Ainda não foram compilados dados estatísticos sobre reincidência nem dos índices de efetividade da Justiça Restaurativa no Cense 2, mas um diagnóstico já reforça a importância do que tem sido feito: “Os dados não podem ser tratados só com números, pois as ações humanas são subjetivas. Pode até ocorrer a reincidência, como de fato ocorre, mas às vezes é nela que se pode dar continuidade ao trabalho com um adolescente quando ele volta para o sistema e só então se consegue acertar a ‘veia’ da orientação restaurativa”, completa, ao lembrar que, após liberados das medidas socioeducativas, todos os menores são acompanhados e orientados. “De modo geral, os adolescentes passam por um processo de sensibilização, conseguindo entender a importância de ter empatia e se colocar no lugar do outro. Serão adultos melhores para o futuro próximo”, reforçou.

Passam neste momento pelo processo a maioria dos cerca de 70 menores em ressocialização.

A restauração dentro das escolas

“Te pego lá fora”, “você vai ver na saída”… As frases impositivas e nada incomuns de serem ouvidas dentro do ambiente escolar atraíram o conceito da restauração.

Como esses ambientes se tornaram cada vez mais permeáveis ao tráfico e uso de drogas, as disputas vinham ficando mais violentas, até com casos de homicídios. Diante disso, a Justiça Restaurativa começa a cumprir seu papel. São medidas preventivas e ostensivas, esta última no bom sentido, tentando apaziguar as diferenças.

Segundo a diretora do Núcleo Regional de Educação de Cascavel, Inez Dalavechia, nos últimos meses houve diminuição expressiva dos casos de enfrentamento nas escolas.

Hoje, em Cascavel, todos os 42 colégios estaduais contam com profissionais capacitados para fazer essas mediações. Novas turmas foram criadas pelo NRE abrindo a capacitação para todos os 18 municípios de abrangência.

No chamado Nível 1, o mais básico, são 220 preparados e no nível mais avançado são 80. “Eles trabalham com o circulo de paz, estimulam a empatia para que todos se coloquem no lugar do outro, tudo organizado e focado na resolução de conflitos”, completou a diretora do NRE.

Nos círculos em andamento estão sendo trabalhados valores com base no diálogo, participação, autonomia, respeito, busca de sentido e pertencimento como forma de preparo para a mediação de conflitos, criando oportunidades para os envolvidos (ofensor, vítima, familiares, comunidades) se expressarem e participarem da construção de ações concretas que possibilitam prevenir a violência e lidar com suas implicações.
“Muito além de um método não violento para resolver conflitos, a Justiça Restaurativa se apresenta como um novo modelo de justiça, que assume como preocupação central as relações prejudicadas por situações de violência e que se orienta pelas consequências e danos causados, não pela definição de culpados e punições”, resume a diretora.

Sem novas vítimas na garantia dos direitos

Toledo – A ofensa, uma sentença e três partes em desagrado. A vítima deixa a sala com a sensação de que o dano não foi reparado. O acusado não consegue entender que a pena é para que não repita o crime. O juiz deixa o tribunal com a sensação de precisar saber mais sobre aqueles desconhecidos. Sentir de uma forma mais intensa e escutar de uma forma passiva e empática. Apesar de todo o esforço dos envolvidos, a sensação é que a batalha judicial não devolve o bem-estar social e a convívio harmônico da paz.

Em Toledo, dois juízes sensibilizados com essa rotina cíclica da Justiça foram em busca de treinamento. O projeto está sob responsabilidade do juiz da Vara da Infância e Juventude de Toledo, Rodrigo Rodrigues Dias. “A essência desse projeto é incentivar e capacitar pessoas para de forma voluntária trabalhar na resolução de conflitos e na construção de soluções, promover os círculos da paz e motivar a sociedade sobre o modo mais humano de solução”.

“Vivemos em outro tempo e as pessoas precisam somar suas experiências da vivência social em comunidade para a solução dos problemas. A lei é essencial e a espinha dorsal, mas não podem ignorar a realidade e a especificidade de cada caso. Algumas pessoas sentem a necessidade de cobrar a ofensa em dinheiro, mas acabam descobrindo que o amor e o respeito pagariam com facilidade a conta. Não é abrir mãos dos direitos, mas garantir que a luta por eles não faça novas vítimas”, afirma o juiz.

Os pacificadores

Além da formação para atuar como mediadores, levando em consideração isenção, empatia e principalmente respeito, os juízes Rodrigo Dias e Luciana Beal desenvolvem um projeto para a formação de líderes comunitários e religiosos para atuar na pacificação e resolução de pequenos conflitos. “O Projeto Pacificar é Divino é audacioso e simples ao mesmo tempo. Os líderes religiosos já estão habituados a ouvir os conflitos pessoais e comunitários e preparar o campo para uma solução com redução de impactos. Então oferecemos mais técnicas e dividimos experiências ao convidar todos para que sejam ferramentas na construção de uma sociedade que tenha repertório social para que resolva seus problemas mais simples sem que o rompimento emocional e a judicialização se façam necessários”.

O programa pretende aproveitar o excelente trabalho de aconselhamento já realizado nas igrejas, centros e templos religiosos, aliado às técnicas judiciais de solução consensual de conflitos, para tratar das disputas levadas pelos fiéis. Com isso, os acordos realizados dentro dessas instituições, nos chamados Espaços Pacificar, poderão ser homologados por um juiz.

Resgate Histórico

Justiça Restaurativa é um novo modelo de justiça voltado para as situações prejudicadas pela existência da violência. Valoriza a autonomia e o diálogo, criando oportunidades para que as pessoas envolvidas no conflito (autor e receptor do fato, familiares e comunidade) possam conversar e entender a causa real do conflito, a fim de restaurar a harmonia e o equilíbrio entre todos. A ética restaurativa é de inclusão e de responsabilidade social e promove o conceito de responsabilidade ativa. As práticas restaurativas surgiram na Nova Zelândia, inspiradas nos mecanismos de solução de litígios dos aborígines maoris, e se manifestaram com força nos anos 1970, com as primeiras experiências contemporâneas com mediação entre infrator e vítima. As ideias sobre a Justiça Restaurativa têm, assim, sua origem há mais de três décadas. A Colômbia é também um dos países reconhecidos como pioneiros nesta pratica, pois enfrentou uma das maiores ondas de violência de sua história utilizando o método como antídoto.