RIO – Ser vencedor no Prêmio Sesc de Literatura não é tarefa simples. A última edição do tradicional concurso para novos autores recebeu um total de 1.503 inscrições, incluindo o livro de contos ?Receita para se fazer um monstro?, do professor pernambucano Mário Rodrigues; e o romance ?Céus e terra?, do jornalista baiano Franklin Carvalho. Os dois livros refletem bem o espírito do prêmio: oferecer a autores com potencial e pouca publicidade um ponto de partida para voos futuros. Links Prosa
?Céus e terra?, o livro ?feito para enganar a morte?, abre com a decapitação do protagonista e narrador Galego, ou Menino sem Cabeça, como o recordariam os habitantes da pequena cidade do sertão baiano onde o romance se passa. Ainda que defuntos autores não sejam estranhos à literatura brasileira, Carvalho opta não por um narrador centrado em suas próprias memórias, mas por um narrador-fantasma ? e literalmente um fantasma, podemos supor ? que vaga pela cidade observando seus habitantes, seus segredos e suas misérias. A alta voltagem do primeiro capítulo dá então lugar a uma narração comedida, de uma beleza vagarosa que se mantém, com poucas perturbações, até o fim. O que muda é a percepção do povoado a respeito de um menino de baixo status social que, depois de morto, começa a ser visto como um santo local. Os milagres que lhe são atribuídos, junto ao fato de ter sido decapitado em frente a um homem crucificado, entrelaçam o retrato da vida no local com reflexões sobre a religiosidade popular, sobre o vácuo em que vive Galego em contraste com suas expectativas como católico e, previsivelmente, sobre a enigmática figura do Crucificado.
Já a crueldade é o eixo ao redor dos quais giram as séries de contos curtos que compõem ?Receita para se fazer um monstro?. Concentrados nas memórias da infância do narrador e protagonista nos anos 80, os relatos se baseiam em sua maioria numa violência física crua dirigida a minorias, sejam elas de classe social, raça, gênero, espécie, deficiência física, e outras. O livro joga com o double bind construído sobre a impossibilidade ética de aceitar o personagem e a necessidade narrativa de adotar seu ponto de vista. Em seus melhores momentos, os textos dialogam com autores como Veronica Stigger e Michel Laub. Nos piores, o narrador declara e repete sua falta de empatia e seu sadismo ? um ?monstro?, como o define o título do volume ?, o que configura algo como um autojulgamento e pressupõe a rejeição dos leitores. Não seria mais efetivo deixá-los lidar sozinhos com os dilemas éticos que a relação leitor-personagem apresenta?
Apesar das diferenças, as duas obras têm como claro ponto de interseção a descoberta do sofrimento e da morte num tom nostálgico de memórias da infância. Donos de estilos sóbrios, os dois autores apostam num efeito de acumulação, seja pela multiplicidade de personagens e casos da cidade pequena, seja pela sequência de narrações curtas de atos violentos. E mostram que 2016 foi um bom ano, ao menos para o Prêmio Sesc.
* Victoria Saramago é professora adjunta no Departamento de Línguas e Literaturas Neolatinas da Universidade de Chicago
?Céus e terra?
Autor: Franklin Carvalho.
Editora: Record
Páginas: 208
Preço: R$ 29,90
Cotação: Bom
?Receita para se fazer um monstro?
Autor: Mário Rodrigues
Editora: Record
Páginas: 224
Preço: R$ 29,90
Cotação: Bom