RIO – ?Eu sou um poeta, e sei disso?, cantou Bob Dylan em ?I
shall be free nº 10?, música gravada em 1964. Às 13h de
ontem (8h de Brasília), a Academia Sueca deixou claro que concorda com o cantor
e compositor, atribuindo a ele o Nobel de Literatura ?por ter criado uma nova
expressão poética dentro da grande tradição norte-americana da canção?.
Aos 75 anos, Dylan é o
primeiro cantor-compositor em toda a História e apenas o
segundo músico a vencer um Nobel em 103 anos (o prosador e compositor indiano
Rabindranath
Tagore foi escolhido em 1913). A recompensa
surpreendeu as casas de apostas, mas nem tanto ? quem costuma acompanhar os
rumores que antecedem a cerimônia sabe que o nome do astro americano vinha sendo
cogitado nos últimos anos. Mas pairava a dúvida: seria a Academia capaz de
premiar um autor cuja obra se limita ? com exceção de seu livro de memórias,
?Crônicas Volume 1? (Planeta, 2005), e uma ficção, ?Tarântula? (Brasiliense,
1986) ? aos 69 álbuns de sua produção musical? Não por acaso, a ousada decisão
foi recebida com exclamações e com algumas risadas pelo público presente na
Academia Real de Estocolmo.
dylanb Nascido Robert Allen Zimmerman em 1941, em Duluth, uma cidade mineradora do Estado de
Minnesota, nos Estados Unidos, Bob Dylan dedicou-se, desde a adolescência, à música
tradicional americana. Sua maior fonte de inspiração não era Tolstoi ou Flaubert, mas o cantor Woody Guthrie,
cujo estilo musical tentava imitar no início da carreira. Depois de se mudar
para Nova York, passou a se apresentar em casas noturnas de Greenwich Village, centro da cena beatnik da época. Em 1962, gravou seu primeiro
disco, ?Bob Dylan?. Seu segundo trabalho, ?The freewheelin? Bob Dylan?,
lançado no ano seguinte, ganhou fama mundial, com canções que são até hoje
consideradas hinos dos direitos civis, como ?Blowin? in the wind?.
Agora, Dylan é o
único artista agraciado com Nobel, Oscar, Grammy e Globo de Ouro. Ao explicar a decisão do
comitê, um de seus membros, o crítico sueco Per Wastberg, justificou a opção por Dylan chamando-o de, ?provavelmente, o maior poeta
vivo?.
Até por seu ineditismo, o Nobel a Bob Dylan provocou divisões mundo afora. Há quem
defenda a abertura da Academia a concepções menos estanques de ?literatura? (no
ano passado, o prêmio à jornalista bielorrussa Svetlana Alexievitch, cuja obra se fixa em registar
depoimentos orais, já sinalizava uma tendência nesse sentido). Mesmo sendo uma
potencial rival de Dylan na
corrida, a escritora americana Joyce Carol
Oates chamou a escolha de ?inspirada? e disse
esperar que o laureado ?use a oportunidade para dizer algo político?.
Mas há quem não tenha visto o anúncio com bons olhos. Ao longo do dia,
escritores e críticos questionaram nas redes sociais o fato de o cantor e
compositor deixar para trás nomes da literatura tradicional, como os eternos
candidatos Philip Roth e Haruki Murakami, ou o também cotado poeta sírio Adonis.
Para o escritor Alberto Mussa, autor de ?A primeira história do mundo? (Record), o Nobel deste ano é um indício de que a
literatura ?perdeu a centralidade?.
? Acho lamentável, porque um romancista nunca vai ganhar um prêmio de música
? diz, em entrevista por telefone. ? Letra de música também é arte da palavra,
mas existem muitos prêmios para a música, e acho que, tradicionalmente, se
separam as coisas. A literatura é a linguagem que tem menos visibilidade, e
perdeu-se a oportunidade de divulgá-la. O ideal é premiar alguém pouco conhecido
ou traduzido, como o Adonis.
O romancista, porém, diz acreditar que a importância da Academia Sueca é
superestimada. Mussa critica a expectativa mundial criada pelo ?fetiche do
Nobel?:
? É um prêmio totalmente político, que recompensa estereótipos. Para mim, o
Portugal Telecom
(hoje chamado Oceanos) é mais importante do que o Nobel.
Já os artistas que transitam entre os dois universos ? poesia e canção ?
aprovaram. O filósofo, poeta e letrista Antonio Cicero diz que o Nobel ajuda a
?jogar no lixo? um velho preconceito, que ignora as próprias origens da
literatura.
? Sabe-se que o primeiro grande poeta da tradição ocidental, Homero, cantava
seus poemas para seu público ? explica. ? Assim também faziam os poetas líricos,
que tocavam a lira enquanto cantavam. Ou seja, a grande poesia da Grécia Antiga
era letra de canções. E essas letras são alguns dos maiores poemas da
literatura. Por que, então, fingir que não há, também hoje, grandes poemas na
forma de letras de canções? Aqui no Brasil, basta mencionar canções de poetas
como Noel Rosa, Dorival Caymmi, Caetano Veloso ou Chico Buarque.
?Se Dylan é um poeta, eu sou um jogador de basquete?, ironizou certa vez o
escritor Norman Mailer, morto em 2007 (sem nunca ter vencido o Nobel). O músico,
cantor, romancista e ensaísta Vitor Ramil discorda. Ele destaca que muitos
escritores contemporâneos se dizem influenciados por Dylan.
? A canção tem uma força comunicativa: a letra passa e precisa te capturar
instantaneamente ? diz Ramil, que adaptou para o português algumas músicas
emblemáticas do americano. ? Dylan sempre teve essa capacidade de nos botar para
dentro do que ele canta. Para dominar essa síntese poética em seus textos
literários, muitos escritores fazem uma preparação no mundo da canção.
Autor do posfácio da edição brasileira das memórias de Dylan ? e um dos
maiores especialistas no cantor no Brasil ? o escritor Eduardo Bueno brinca que,
ao saber da notícia, achou se tratar do Nobel da Paz.
? Acho que Dylan está honrado e estarrecido, mas não tem como ele não estar
pensando nos amigos que não ganharam o prêmio, como Jack Kerouac e Allen
Ginsberg ? especula. ? Uma discussão que existe é a de que o Nobel estaria
admitindo que o rock mudou o mundo para melhor. Outra, uma piada, é que ele
estaria se abrindo para os jovens, ao premiar um cara de 70 e tantos anos.
Para Paulo Roberto Pires, editor da revista ?Serrote?, as reações contrárias
ao Nobel de Dylan mostram que ?o Brasil está caprichando na célere caminhada
para o passado?:
? Chegamos à Belle Époque, discutindo o que é literatura. Todo reacionário
quer restauração: ?A literatura aos literatos!?, exclamam, compungidos, com a
mão sobre as obras completas de um escritor de verdade, de livros. A polêmica
vai ser capa da próxima edição da revista ?Fon Fon?.
Colaboraram Leonardo Lichote, Mariana Filgueiras, Natália Castro e Silvio Essinger