Cotidiano

Uma turma de jovens artistas cariocas dá nova luz à aquarela

INFOCHPDPICT000059257115RIO – Cercada por uma parede laranja, outra verde e uma terceira respingada de tinta, a artista plástica Julia Debasse conta que pratica o desapego diariamente ao pintar com aquarela, no ateliê improvisado na sala de seu apartamento, na Gávea.

? Tem que desapegar. Aquarela é uma mídia literalmente fluida. A água faz o que quer, e você trabalha com imprevisibilidade ? explica a carioca de 31 anos, diante de um desenho (inacabado) de um cérebro habitado por uma lula gigante e outras criaturas das fossas abissais.

Julia está trabalhando na continuação da série ?Órgãos e biomas?, composta ainda por um pulmão povoado por aves canoras e rins repletos de corais e plantas aquáticas. A primeira parte do trabalho foi exposta na Artur Fildalgo Galeria, em Copacabana.

? Juntei ilustrações anatômicas e representações naturalistas numa referência à origem da aquarela, técnica muito usada para o registro de expedições antes do surgimento da fotografia ? diz a artista. ? Mas eu uso a aquarela de uma forma muito estranha, com muita pouca água. E, devo confessar, eu roubo. Às vezes, jogo um pouco de tinta acrílica. E, a partir daí, comecei a desenvolver uma técnica mista.

Integrante de uma geração de artistas que trabalha majoritariamente com fotografia, vídeo, instalação e performance, Julia faz parte de uma turma que, cada um na sua técnica, está dando nova luz à aquarela.

? É interessante que alguns jovens artistas utilizem a aquarela, porque é uma técnica bastante difícil, em que o artista tem que tirar partido da imprecisão gerada pelo movimento da água ? observa o artista plástico Luiz Ernesto, professor de pintura da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). ?No século XIX, Debret usou a aquarela para retratar o cotidiano no Brasil. Entre nomes da arte contemporânea, podemos nos lembrar de Cecily Brown, David Hockney e Gerhard Richter.

Considerado um dos maiores aquarelistas de todos os tempos, o pintor inglês William Turner (1775-1851) é uma das principais referências de Julia:

? Ele era o maior aquarelista, mas todos conhecem mais o seu trabalho com pintura a óleo, pois a aquarela sempre foi tratada pela academia como uma mídia menor. Tem a coisa do papel, que não tem a garantia de durar como a tela. Além de cara, a aquarela é uma técnica muito difícil. Não dá para apagar, como na pintura, que você joga o branco e começa de novo. Na aquarela, não existe começar de novo, por causa da transparência. Você tem que abraçar o acidente, caso contrário, vai ficar maluco. E acho que essa é a mágica.

INFOCHPDPICT000059257167Filho da professora da Escola de Belas Artes da UFRJ Lourdes Barreto e do gravurista e desenhista Marcos Varela, Pedro Varela, de 34 anos, foi apresentado à aquarela ainda menino, dentro de casa.

? A minha formação artística começou em casa, pelos meus pais. E a aquarela vem desse primeiro momento ? lembra Pedro, um dos expoentes de sua geração. ? A minha única forma de entrar na pintura é através de uma técnica mais aquarelada. Ou seja, meu trabalho é aquarela, mas é feito com tinta acrílica. Usar tinta diluída como aquarela é uma forma muito pouco explorada na história da arte.

Pedro é fascinado pelo efeito das camadas sobrepostas:

? Existe um dado poético muito importante: a fluidez. Sou encantado por isso. Antigamente, existia uma tensão entre o desenho e a pintura. Para um acadêmico, um desenho não era uma obra finalizada, era um estudo, um rascunho. E hoje não tem mais essa questão. Cada um busca se manifestar da maneira mais individual possível.

Pedro anda para lá e para cá com saquinhos de plástico, desses de supermercado e farmácia, repletos de recortes e desenhos variados, que vão desde uma flor ao telhado de uma casa copiada de uma obra de Debret. Morador de Petrópolis, semana passada ele desceu a serra munido de dois sacos para finalizar trabalhos na galeria que o representa no Rio, a Luciana Caravello Arte Contemporânea, em Ipanema.

? O meu trabalho não tem esboço. Preciso estar no embate com o material. Faço aquarelas com colagens, uso costuras. Sou mesmo promíscuo na mistura de técnicas ? diverte-se ele.

A paisagem de cidades e de florestas ? reais ou imaginárias ? são recorrentes. No momento, Pedro está em cartaz com uma série de flores e frutos com um quê de alucinógenos, na Galeria Zipper, em São Paulo.

? Continuo a minha investigação sobre paisagens dentro do universo tropical. Sempre fiz algumas florestas entre as cidades que construí nos quadros. É a forma que encontrei para falar sobre a minha percepção de mundo ? explica Pedro.

INFOCHPDPICT000059220645O universo infantil, com flores, bonecas e bichos fofinhos, é a marca do trabalho de Pilar Rodrigues Valle, de 39 anos. Publicitária por formação, ela começou a pintar aquarelas depois que sua filha nasceu, há quatro anos.

? Sempre desenhei com lápis de cor, tinha algum jeito para a coisa. Até que, durante a licença maternidade, entediada por não conseguir dormir à tarde junto com a Lia, comecei a fazer umas bolinhas com um kit de aquarela que tinha ganhado de presente do meu irmão e que nunca tinha usado. Me identifiquei de imediado ? conta ela.

Empolgada com o novo mundo de cores, Pilar passou a fazer todos os cursos que encontrou na internet.

? Virei uma maria-workshop ? ri.

No início deste ano, enfim, Pilar deixou o trabalho como redatora em agência de publicidade de lado para se dedicar apenas à pintura. No próximo dia 2, ela vai expor na La Féria, evento para pais e filhos no Solar das Palmeiras, em Botafogo. É que a Aquarelas da Pilar, nome de sua página no Facebook, passou a fazer o maior sucesso entre mães moderninhas, que encomendam dinossauros, gatinhos e flamingos para decorar os quartos de seus filhos.

? Venho recebendo muitas encomendas. Sempre que tem uma folguinha, me mando para algum workshop, tenho muito o que aprender.

Um desses workshops foi comandando pelo artista Nestor Jr., em São Paulo. No dia 9 de julho, o aquarelista vai trazer o curso para o Rio pela primeira vez. Será na Casa da Árvore, espaço cultural em Santa Teresa.

? Estou viajando o Brasil inteiro com esse workshop e noto que as pessoas estão realmente interessadas no tema. As turmas estão sempre cheias ? conta Nestor Jr.. ? Sinto que, de modo geral, está acontecendo uma um resgate das técnicas mais tradicionais, como pintura, gravura e aquarela. Havia um preconceito grande com a aquarela no Brasil, muito por conta da dificuldade de conservação do papel, mas que agora foi derrubado de vez. A aquarela vive um momento especial. E livre. Os artistas contemporâneos estão usando inclusive aquarela em instalações. Por que não? Uma não toma lugar da outra.