Cotidiano

Uma palavra a mais

Segunda-feira, 5:20 da manhã. O barulho de uma batida estrondosa acordou boa parte dos moradores do condomínio. Carro em poste, só podia ser. O curioso é que ninguém ouviu a comum freada que antecede um acidente que causa uma barulheira daquelas. Menos, mal, pensei. Quem bateu dormiu na direção e se quer teve tempo de ver o que aconteceu. Das janelas, nada se via, e foi a vizinha do primeiro andar que avisou ao síndico a origem daquela baque. No acesso à garagem, Miriam estava caída. E não era qualquer tombo. A vizinha do décimo quinto andar se jogou da sacada dando fim a uma depressão que já durava alguns anos.

Alguém trouxe lençóis para cobrir o que sobrou de Miriam no chão. Em poucos minutos, crianças iriam para a escola e era bom evitar a cena macabra.  “Viu o que dá se debruçar na sacada, menino?”, disseram algumas mães, horas depois,  tomando emprestada a tragédia de Miriam para melhor educar seus filhos.

O que se seguiu foi de praxe. Polícia, fotos, IML. E lá se foi o que restou de Miriam dentro de um saco preto. Ficamos nos perguntando se um convite para um cafezinho mais prolongado, um “deixa disso! Vamos lá embaixo tomar um sol!” não teria evitado o suicídio de Miriam. Uma palavra a mais não teria acalentado, pelo menos um pouco, aquele coração aflito?

Suicídio é assim, sempre surpreende. Dona de extraordinária beleza, a Miss Brasil 2004 foi outra que preferiu sair de cena. A atriz Leila Lopes, conhecida nacionalmente como a namoradinha do Brasil, deixou em carta à família a saudade e o desejo de se encontrar com sua falecida mãe. Carregamos aquela ideia de que sucesso, prestígio e dinheiro isenta uma pessoa da depressão e pelo visto estamos redondamente enganados.

Preocupados com água, luz, telefone, aluguel, escola dos filhos e uma série de outros compromissos, não é todo dia que conseguimos dar atenção a uma pessoa abalada, ainda mais quando o sofrimento se estende por tempo indeterminado. Em poucos meses, nossa ajuda vai se tornando cada dia mais rara eclipsada pela rotina que nos suga, para o azar de quem precisava de um ombro para se amparar. Por algumas semanas, caminhávamos cabisbaixos sobre o local onde Miriam caiu.  O basalto havia quebrado. O telhado também. O síndico foi rápido e logo nada mais lembrava o ocorrido. Então a piscina voltou a dar problemas, um ladrão burlou o sistema de segurança da cerca elétrica e a vizinha do 701 foi mordida pelo cão do 402. A vida tomou seu rumo e o apartamento de Miriam já tem novo morador.

A palavra a mais que daria uma chance à vida dela morreu na garganta, secou antes do tempo, nunca foi proferida. À Miriam peço perdão. Talvez tivesse que ter dado mais atenção ao seu semblante triste, à vida solitária que atribui ter sido sua escolha. Alguém tomar remédio para depressão não é fato raro e ninguém imaginava que seria assim seu fim. Meia hora de meu tempo por semana poderia ter dado a ela alguns instantes de abençoada distração. Não posso mudar o passado, mas vejo a solitária vizinha do 304 com outros olhos. Qualquer dia desses vou levar um pedaço de bolo, convidar para caminhar, tomar um cafezinho.  Mas isso mês que vem porque agora meu caçula está de recuperação em matemática, a bateria do carro precisa ser trocada, a carteira de motorista já vai vencer, a calça do marido precisa de uma bainha, a rachadura do quarto está enorme e tenho que dar um jeito de ir na loja trocar esse celular que veio com defeito. Depois disso, mamografia, dentista nos filhos, tártaro dos dentes do cachorro e no final de cada exausto dia tentar responder a eterna pergunta do porquê nos ocupar tanto com essas coisas tão superficiais…