Cotidiano

Respeito ao direito

É conhecida a trajetória do samba. De música “da malandragem”, proibida, com seus compositores perseguidos pela polícia, tornou-se identificada como autêntica manifestação da cultura do país.

A fase clandestina gerou personagens — um deles chegou a ser cantado nos versos moleques de Tio João e Nilton Campolino (Delegado Chico Palha/Sem alma, sem coração/Não quer samba nem curimba/Na sua jurisdição./Ele não prendia/Só batia…).

Igualmente, o atual estágio de reconhecimento de seu valor tem sido mote para compositores (o sambista João Nogueira, por exemplo, enalteceu a respeitabilidade ainda que tardia: “Samba, és hoje da alta sociedade/Desce do morro pra cidade/e já frequentas o Municipal”).

Não foi outra a origem de outros ritmos cujo valor hoje é reconhecido pela sociedade — o jazz dos negros americanos, o jongo, manifestação de resistência no Rio de Janeiro e por aí vai. É importante assinalar a maneira como manifestações culturais nascem e se tornam emblemáticas da expressão do que se costuma chamar de minorias (ainda que não numericamente, mas como grupos de produção de cultura) num momento em que, por discriminação, radicalismo ou quaisquer outras razões, parcela considerável da sociedade tem relegado o funk à simplória categoria de “música de bandidos”.

É uma simplificação perigosa. Ela leva, em geral, ao preconceito e à perseguição. Ambos estão presentes, por exemplo, na estigmatização policial dos bailes realizados em favelas pacificadas — a ponto de tais eventos serem explicitamente proibidos pelos comando de UPPs ali instaladas, uma afronta a direitos comezinhos como a liberdade de reunião e de manifestação. No âmbito institucional, a discriminação mal disfarçada chegou a virar lei na Assembleia Legislativa, em 2008, a partir de projeto do então deputado Álvaro Lins, o ex-chefe de Polícia preso por se imiscuir com o crime organizado. Sintomático. Sob o pretexto de regulamentar os bailes, o diploma os inviabilizava.

O funk não é, necessariamente, um ritmo de bandidos, assim como o rock, a despeito de a ele se associar o jargão “sexo, drogas e rock’ roll, não pode ser resumido a “música de drogados”. Ao contrário, de sua simplicidade inicial decorreu uma profusão de músicos de talento.

No caso do funk, há letras que exaltam a violência, a criminalidade, o analfabetismo político, o desrespeito à lei. Mas não se pode esquecer que ele nasceu como manifestação de comunidades onde a violência é uma realidade. Se o oportunismo social o associou ao crime é outra discussão — um problema de combate ao banditismo, não à música.

A qualidade (ou a falta dela) do que se ouve mede-se com o tempo. O que é bom fica. Pode-se ou não gostar do ritmo. Letras devem ser julgadas pelo valor (ou, igualmente, pela ausência dele) em si. Esses são o filtro correto, os critérios aceitáveis para discutir o funk — ou qualquer outro ritmo; nunca, aqueles que procurem abatê-lo como direito de manifestação cultural, que é um princípio universal, e não seletivo.