Cotidiano

Reflexão: Quando o Dia das Mães é um tormento

Quando a data se aproxima, as Clarices Lispector de plantão já começam a contagem regressiva daquilo que é um verdadeiro tormento em suas vidas, uma lembrança nada agradável e que todo ano se repete: o Dia das Mães. Não bastasse ter de manter as formalidades familiares, a data que é considerada o segundo Natal do ano pelos lojistas, e que faz a alegria dos publicitários, desperta meu lado subversivo, o de jornalista, e é por isso que não consigo fechar os olhos em nome do marketing, do amor e da união tão aclamada por todas as religiões do mundo quando há quem desde primeiro de maio já está sofrendo com a proximidade da celebração cuja maior provação é ter de passar um dia inteiro ao lado de sua mãe.

Heresia? Não. Tão antigo quanto a existência, não é raro o número de pessoas que trazem no coração grande mágoa por suas mães, mulheres nas quais não se viu a magia da maternidade, o amor incondicional pelo filho, a bênção divina de gerar uma vida no ventre de uma mulher que, ao se descobrir grávida, blasfemou não apenas o dia da concepção, mas todos os outros em que recaiu sobre seus ombros o fardo da maternidade.

A vida passa, as crianças cresceram, se tornaram adultas e talvez agora ter filhos possa ser algo interessante, ainda mais se forem independentes financeiramente. A falta de afeto materno ficou para trás. Agora é bola para frente e "está aqui minha conta de telefone e plano de saúde, filha", realidade pesadamente vivida por uma colega de trabalho que luta contra as profundas sequelas de não ter contado com o amor e a dedicação de sua mãe, palavra esta que faz com que sinta calafrios. A aversão pela maternidade é tanta que minha amiga optou por não ter filhos. Ela não que ser essa coisa pesada, mãe, na vida de ninguém.

O desconforto que algumas pessoas têm em falar de seu passado não se restringe apenas à mulher que bateu, que espancou, que abusou verbalmente do filho na hora da discussão, mas àquela que por uma razão ou outra não soube manifestar amor, que se limitou a ensinar disciplina e retidão sem considerar que criança precisa de abraço, de carinho, de “eu te amo e estou com você até o fim”, a segurança que faz de uma criança um adulto mais preparado para as intempéries da vida.

Não existem mães mágicas e sim mães reais, muitas das quais vítimas de sua própria dor e solitária infância, discernimento que faz com que muitos filhos consigam perdoar suas mães, adultos que agora têm condições de compreender a fonte da agressividade e falta de afetuosidade dessas mulheres. O problema é que o período amargo vivenciado por elas se replica na segunda e até terceira geração se ninguém dar um basta àquilo que se tornou endêmico na família. Faz parte do jogo da vida, o perdoar e o aprender, mas o mais desagradável disso tudo é quando, conhecido os fatos, ainda impera a dissimulação, a mulher que espera no dia das mães atenção, carinho, beijos e afetos do filho que, sabe bem, não cuidou como devia. Essa tortura é contada por minha colega, pessoa que já demonstra seu mal humor pelo que terá de enfrentar na próxima semana. E com o irmão dela não é diferente. O senhor com mais de 50 anos comprou um presente para fazer de conta que gosta de uma pessoa que não aprecia, sentimentos contraditórios que não podem ser externados para além de um consultório médico, quatro paredes que evitam testemunhas para o ingrato filho que peca contra a própria existência ao falar mal de sua mãe.

Essa falta de afinidade, essa quase aversão que um filho pode sentir por sua mãe tem de ser engolida no seio familiar, peso que contribui ainda mais para o fatídico dia ser algo difícil de suportar. Dia das Mães, para essas pessoas, é um momento delicado de ser compartilhado. Nessa data, afinal, filhos e sobrinhos também estão presentes, e o binômio mãe-filho deve dar sinais positivos a todos, pois como explicar aos filhos, jovens que desconhecem o passado, que é possível, sim, seus pais não gostarem de suas mães? Se isso ficar exposto, os adultos se perdem em uma espiral ainda pior. É preciso que seus filhos, crianças e adolescentes, tenham o exemplo de mãe e filho como uma relação de sucesso, caso contrário, pode-se abrir uma fenda no relacionamento, perigosa possibilidade de os filhos se segregarem dos pais quando desavenças ganharem espaço. Além disso, manter as aparências também é uma forma de evitar o rótulo, lá adiante, de maus filhos, pessoas que não trataram com carinho e gentileza a doce vovozinha, mulher corcunda, frágil e de cabelos brancos que achou prudente não contar para os netos as inúmeras bofetadas que desferiu contra o pai deles ainda em tenra idade.

 

Para quem sai entusiasmado para comprar um presente especial para aquela que é uma grande pessoa na sua história, parabéns, a vida foi generosa. Para quem já sofre com a proximidade do evento, resta o consolo de que o que passou, passado está, a vida tomou seu curso, os amores vieram em forma de amigos e quem sabe de filhos, relações que podem ser construídas sob outra plataforma, esta sólida e soberana por conta do conhecimento do lado obscuro da maternidade, o que inclui evitar os caminhos que, você sabe bem, deram muito, mas muito errado.