Cotidiano

Nem Roberto, nem Cazuza, nem Ivete: doc acompanha covers de estrelas

RIO ? Numa apresentação ocorrida há uma semana, no Rio, Ivete Sangalo entregou o microfone para Isadora, a filha de 1 ano e meio de Cazuza, e juntas as duas se divertiram com a música ?Dançando?. Na plateia, sentado na terceira fileira, numa cadeira azul e portando seu terno branco característico, Roberto Carlos apenas sorria, sorria muito, bicho.

? Não valeu, ela roubou minha cena ? brincou aquela Ivete de quase dois metros (só de salto, uns 15 centímetros) e que mais cedo fez questão de apresentar suas credenciais ao público: ? Todos os dias eu sou chamada de veadinho. E eu digo: me respeite que eu não sou veadinho. Sou veadão.

A plateia riu e aplaudiu. Naquela noite, os espectadores foram ao Cine Joia de Copacabana exatamente porque Scarleth Sangalo não é Ivete, Pepê Moraes não é Cazuza, e Carlos Evanney não é Roberto Carlos. Mas, em sua vida pública, são. O trio protagoniza ?Os outros?, documentário de Sandra Werneck que estreia hoje, enfocando a rotina ? menos glamourosa, mas ainda assim intensa ? de artistas covers. O filme mostra, por exemplo, Pepê baixando o preço do cachê para um show em Uberlândia, porque, em suas palavras, ?eu gosto de cantar, o dinheiro é consequência?. Também acompanha Evanney fazendo uma chapinha num salão de beleza, com uma foto do Rei Roberto à frente para servir de modelo. E revela Edson Júnior em seu pequeno quarto de Salvador, sentado na cama e se maquiando sozinho para se transformar em Scarleth.

Os Outros – Carlos Evanney

A ideia original da diretora era fazer um documentário sobre o Rei, mas ela logo desistiu da investida porque já ficou claro para todo mundo que Roberto Carlos definitivamente não gosta de relatos biográficos. Sandra, então, ouviu de um amigo a história de um cantor que não é apenas cover de Roberto, mas também realiza sua própria versão do famoso cruzeiro em que Roberto canta para fãs. Só que, no lugar do luxuoso iate do Rei percorrendo a costa brasileira, Evanney se apresenta num saveiro na Baía de Guanabara.

? Eu me perguntei como alguém é capaz de tirar sua personalidade, a sua vida de alguma maneira, sua identidade, e passar a viver a vida do outro ? explica Sandra, que passou dois anos com seus personagens. ? O Evanney foi o primeiro. Depois fomos atrás de outros covers, fizemos pesquisa. Cheguei a conversar com uns dez, até escolher os três para o filme. Eu queria uma diversidade de estilos, um romântico, um mais popular e um mais rock?n?roll.

O rock ficou por conta de Pepê. Seis anos mais novo, o carioca conheceu Cazuza nos anos 1980, quando era office boy da TV Globo, e também foi figurinha fácil nos shows do Barão Vermelho. Mas sua carreira artística primeiro seguiu outros caminhos. Ele teve uma banda de heavy metal, tocou MPB em barzinhos e escreveu pops ?chicletinhos? para tentar chegar às rádios.

Os Outros – Pepê Moraes

Mas era preciso ganhar dinheiro, e Pepê foi ser professor de História.

? Meus alunos me diziam: ?O que o senhor está fazendo aqui? Vai cantar, professor? ? conta. ? Aí, em 2009, num karaokê num bar em Vila Isabel, eu cantei ?Pro dia nascer feliz?, e a galera me aplaudiu de pé. Aí eu vi que era aquilo que eu queria. Eu já tinha esse cabelo desde moleque e sempre carreguei uma voz meio parecida com a do Cazuza.

Pepê mora em Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio, com a mulher e a filha Isadora (ele tem outra filha, de 27 anos, de um casamento anterior). Seu primeiro grande momento como Cazuza foi em 2010, quando ele foi convidado a cantar cinco músicas ao lado de Lucinha Araújo, a mãe do cantor morto em 1990, numa universidade. Outro foi em 2015, quando participou do programa ?Máquina da fama?, do SBT, uma batalha de artistas covers. Na semana passada, na pré-estreia de ?Os outros? acompanhada de pocket show do trio de protagonistas do filme, Pepê exibiu sua energia em ?Pro dia nascer feliz?, com direito a lenços em volta do pescoço e na testa e pulinhos por cima das poltronas do cinema.

‘O QUE É ISSO, PAPAI?’

Assim como Pepê, Scarleth Sangalo tem experiência de TV e conhece pessoalmente sua artista-modelo. A baiana também já participou do ?Máquina da fama?, além dos programas ?Mais você? e ?Esquenta?, da TV Globo. Em seu trabalho, ela dubla Ivete e dança como ela. Na verdade, Scarleth diz que, nos shows, ?se sente Ivete?.

? Eu sou transformista e comecei a fazer show em 1999, quando eu tinha 15 anos de idade, na verdade ainda tenho ? diz Scarleth. ? Não era minha intenção fazer a Ivete, mas as pessoas começaram a associar a imagem dela com a minha, pelo jeito brincalhão, pelas pernas grossas, pelo rosto fino. Aí comecei a apresentar uma música dela chamada ?Chupa toda?. E nunca mais parei de dançar e de chupar.

Os Outros – Scarleth Sangalo

Scarleth reconhece as dificuldades da vida de um cover, ainda mais um transformista. Ela faz shows de quinta a domingo, em boates, bares, saunas, festas e eventos (?Velório eu nunca fiz, é meu sonho?, diz). De dia, precisa ficar atenta ao corpo, às roupas e ao que tem acontecido na vida de Ivete.

? O artista cover tem que saber o que o artista falou naquele dia, o público espera que eu faça alguma brincadeira assim. Por exemplo, já me contrataram pedindo para, no final, eu olhar para a plateia e dizer ?O que é isso, papai? ? conta Scarleth, lembrando o episódio em que Ivete reclamou do marido durante um show. ? Mas tem um lado difícil, tem muita crítica. As pessoas sem luz caem matando. O povo dá risada, não leva aquilo a sério, acha que eu sou palhaço. Mas palhaço também merece respeito.

Ao menos no Rio de Janeiro, é difícil achar alguém que não respeite Carlos Evanney, provavelmente o artista cover mais famoso do Brasil. Evanney mora na Lapa e volta e meia é reconhecido nas ruas. Antes, ele tinha uma carreira musical como cantor da noite, em que interpretava artistas populares, de Waldick Soriano a Nelson Gonçalves. E o Rei, é claro.

? Quando eu cantava Roberto, mudava tudo, bicho. Mudava até a cor, o cheiro, ninguém queria que eu cantasse outra coisa. Acho que era Deus me avisando que eu deveria seguir esse caminho ? conta Evanney, que vive Roberto Carlos, um cantor cheio de manias, 24 horas por dia. ? Engraçado que eu não sigo exatamente por ser as manias do nosso Rei. Sigo porque também é coisa minha. Eu não me vejo vestindo outra cor que não seja azul e branco, não me vejo sentado numa cadeira vermelha ou preta. Entende?

Evanney tem até a mesma voz anasalada de Roberto Carlos e, em seus shows (ele faz um por semana), gosta de dizer: ?Que prazer rever vocês?. Ainda a exemplo do Rei, ele criou há sete anos o projeto Emoções no Mar da Guanabara, ideia originada do iate Emoções em Alto Mar, mantido por Roberto.

? Costumo dizer que meu lazer é Roberto Carlos. Ele é meu café da manhã, meu almoço, meu jantar.