Cotidiano

Maria Rita Kehl: ?Velho Chico? reinaugura um desejo de utopia

61794882_Tereza Camila Pitanga conta para Santo Domingos Montagner que Miguel Ganriel Leone.jpg

RIO – Eu vi um Brasil na tevê. Ele já não cabe em uma vila cenográfica dentro do Projac. A fictícia Grotas do São Francisco é filmada em Piranhas e em Canindé: vilarejos nas margens do rio, entre Alagoas e Sergipe.

Que novela extraordinária é ?Velho Chico?. Que bela fotografia em tons de sépia e marrom. Uma novela cor de barro e pó, terra e argila. Nenhum ator é loiro ? nem os coronéis. Ninguém tem olhos azuis. O Brasil de Benedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho é agreste. É pobre, remediado, devastado e esperançoso.

Entre morenos, mulatos e cafuzos, destacou-se o um ritual dos índios fulni-ô, na língua nativa, para trazer de volta à vida o personagem Santo (Domingos Montagner, que semanas mais tarde o rio levou ? na vida real). A cena da pajelança vai ficar na história da televisão brasileira.

Mas o Brasil de ?Velho Chico? é também o Brasil dos velhos coronéis. É o sertão da dominação ?cordial?. Da promiscuidade entre o poder político e os interesses privados dos latifundiários. O coronel Saruê (Rodrigo Santoro/Antonio Fagundes) representa o antigo ?manda quem pode, obedece quem tem juízo?. Obedece quem teme a pontaria do capanga Ciço (Marcos Palmeira). É o Brasil arcaico onde a autoridade paternalista dos antigos fazendeiros vem sendo substituída pela violência moderna, eficiente e ainda mais predatória da nova geração de políticos, representada pelo temido e desprezível Carlos (Marcelo Serrado). Contra ele se rebela Dalva (Mariene de Castro), furiosa com o racismo do novo patrão.

Não é preciso recontar a história, que os leitores com certeza acompanham. Histórias são sempre singelas. Mas em ?Velho Chico?, a subversão do senso comum se revela nos detalhes.

Pode ser um detalhe ? ou não! ? que Luiz Fernando Carvalho e Benedito Ruy Barbosa tenham contratado tantos atores excelentes, mas esquecidos, do cinema brasileiro. Luci Pereira, Marcélia Cartaxo, José Dumont, Selma Egrei e muitos outros. E apresentam ao público uma nova geração de atores, liderada pelo veterano Irandhir Santos, revelado pelo próprio Carvalho em ?A Pedra do Reino?.

A reforma agrária ? que Benedito Ruy Barbosa já problematizara nos anos 1990, em ?O Rei do Gado? ? não comparece aqui com nome e sobrenome. Mas é evocada quando Santo e Miguel (Gabriel Leone) lutam contra os males da monocultura latifundiária ? concentração de terras em mãos de poucas famílias, esgotamento do solo, poluição dos rios por agrotóxicos. Os heróis da novela defendem uma agricultura orgânica e ecologicamente correta. Denunciam a morte do rio pelo assoreamento das margens desmatadas pelas plantações. Acenam com a possibilidade de deter a catástrofe ambiental, ainda que lhes custe a redução nos lucros.

Santo, o herói da novela para o país que precisa de heróis, é um personagem construído com heranças do cinema novo. O líder camponês contemporâneo lidera não uma guerrilha messiânica (como Corisco de ?Deus e o Diabo na Terra do Sol?, de Glauber Rocha), mas uma cooperativa de pequenos agricultores que luta para fazer frente ao poder dos coronéis.

?Velho Chico? reinaugura um desejo de utopia. Depois, nos intervalos comerciais, o agronegócio proclama as benesses da devastação e da concentração de renda, em nome da ?riqueza do Brasil?.