Cotidiano

Mais que modelo, um exemplo

2003-072963-_20031002.jpg O país estava a sair de uma excepcionalidade institucional para o reordenamento constitucional, após um demorado amadurecimento do processo de meditação sobre os anseios nacionais. E ali estava ele… acabara de ser eleito para presidir a Assembleia Nacional Constituinte.

Corriam os primeiros meses de 1987 e ele, de pronto, alertava a todos que o caminho a percorrer seria longo, pois vinha das Capitanias, passando pelo Império e por outras Constituintes, a fim de chegarmos a uma nova Constituição. E concluía a sua previsão de que a todos caberia, por fim, edificar os ansiados alicerces de uma justiça social.

Sempre que lhe parecia oportuno, esclarecia aos jovens parlamentares que, sem o poder constituinte, duas categorias modernas do pensamento político não teriam vingado: o povo e a nação. E lecionava que ao tempo das monarquias absolutas nem a nação nem os governados dispunham desse poder constituinte, uma vez que os soberanos o haviam usurpado de uma e de outros.

Sua figura altaneira de notável político respeitado provava que jamais se submetera ao mundo da miudeza ou do varejo das ambições ou dissidências pessoais ou partidárias. Ao contrário, estava, amiúde, voltado para o atacado das preocupações coletivas, a ponto de cultivar a harmonia nos eventuais desencontros.

Era encantador assistir à condução que ele imprimia aos trabalhos constituintes, com a sua pregação em voz alta, repetidas vezes: ?Vamos votar… Vamos votar?, acionando as campainhas do plenário.

Do convívio diário, na Constituinte, pela manhã, à tarde ou à noite, durante dezenove meses ininterruptos, muita coisa ainda se encontra bem viva na minha eterna admiração.

Uma delas o discurso que proferiu, da presidência dos trabalhos constituintes, no dia 27 de julho de 1988, quando repetiu o nome que dera: ?Esta será a Constituição Cidadã porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior discriminação: a miséria.?

Aproveitou, ainda, para dar uma resposta dura aos que pregavam e alardeavam que não haveria Constituição porque o país ficaria ingovernável: ?O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo.?

E mais. ?A Constituição será o guardião da governabilidade. A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis?. ?Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada?.

Daí a sua profecia?Esta Constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo?, confirmada, aliás, nos seus 28 anos de existência, eis que promulgada no dia 5 de outubro de 1988, um dia antes da data (6 de outubro) em que neste mês completaria ele 100 anos.

Essa, a meu sentir, a razão por que certas figuras aparecem e partem deixando clarões duradouros que acabam por se perpetuar em memórias imperecíveis.

Ulysses Guimarães, queiram ou não, será no panorama brasileiro ? a todos os ângulos ? não apenas um exemplo, mas um verdadeiro modelo. O modelo.

Bernardo Cabral é ex-ministro da Justiça e foi relator-geral da Assembleia Nacional Constituinte