Cotidiano

Falta de recursos ameaça o maior tesouro arqueológico brasileiro

RIO ? O Parque Nacional da Serra da Capivara, considerado o mais importante sítio arqueológico do país, está em risco. Por falta de recursos, a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), até então responsável pela manutenção das vias de acesso e conservação das centenas de painéis com pinturas rupestres, anunciou o fim das atividades. De forma emergencial, a equipe de seguranças contratados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) teve o esquema de plantão alterado para manutenção de quatro dos 28 portões de acesso abertos aos visitantes. Mas os tesouros arqueológicos, que estão entre os mais antigos registros de ocupação humana das Américas, estão com sua existência ameaçada.

? Nós estamos completamente sem recursos desde o mês de maio. Não dá mais ? lamentou a fundadora e presidente da Fumdham, Niède Guidon, de 83 anos, informando que os últimos 30 funcionários, de um total de 270 que a fundação já teve, estão de aviso prévio e serão demitidos no fim do mês. ? As pesquisas continuam, os laboratórios e o museu estão abertos, mas retiramos os funcionários das guaritas e da conservação das estradas e dos sítios arqueológicos no parque.

Criado em 1979, o Parque Nacional da Serra da Capivara abrange uma área de aproximadamente 135 mil hectares, no sertão do Piauí. Em 1991, a reserva foi listada como Patrimônio Mundial pela Unesco. Já foram descobertos quase mil sítios arqueológicos, sendo que 172 deles estão preparados para a recepção de visitantes. Apesar de controversos, estudos com datação por radiocarbono apontam indícios da presença humana no continente, como instrumentos de pedra lascada, há 60 mil anos, o que coloca em xeque a teoria de povoamento das Américas pelo Estreito de Bering. A importância histórica e cultural do parque será ressaltada na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos Rio 2016, no próximo domingo.

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MUITAS RIQUEZAS, POUCOS TURISTAS

Além dos artefatos humanos, como pinturas, ferramentas e restos mortais, a região também é rica em vestígios arqueológicos de fauna e flora. No passado, o parque abrigava densa vegetação como a atual Mata Atlântica. Escavações já descobriram fósseis de preguiças gigantes, mamutes e tigres tigres-dentes-de-sabre, entre outras espécies já extintas. Hoje, a vegetação de caatinga predomina, e os visitantes podem se deslumbrar com o avistamento de tatus, tamanduás, veados e mocós, além de centenas de outras espécies animais.

Mesmo com tantos atrativos, o turismo ainda engatinha, apesar de ser fonte de renda importante para um grande número de moradores das cidades de São Raimundo Nonato, Coronel José Dias, Canto do Buriti e São João do Piauí. O maior gargalo é o acesso. O aeroporto de grande porte mais próximo fica em Petrolina, em Pernambuco, a 300 quilômetros de distância, sendo um grande trecho em estrada de terra. No ano passado, após 12 anos de construção, foi inaugurado o Aeroporto Internacional da Serra da Capivara, mas a pista não comporta aviões de grande porte. Apenas em junho último uma linha começou a ser operada, ligando São Raimundo Nonato à capital piauiense, Teresina, duas vezes por semana, em uma pequena aeronave com espaço para nove passageiros.

?ESTOU DESILUDIDA COM O BRASIL?

Aos valentes turistas que conseguem chegar na região, a infraestrutura do parque impressiona, e tudo foi construído graças à arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon. Ela conheceu a região ainda na década de 1970, e foi uma das pioneiras no estudo das pinturas rupestres. A pesquisadora fazia viagens de campo regulares com seus alunos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, até ser designada pelo governo francês para a implantação do parque, em 1992. Desde então, ela dedica a sua vida à pesquisa e à proteção das riquezas da Serra da Capivara.

? Eu achava que não podíamos deixar a Serra da Capivara ser destruída. Para isso, tive que lutar muito, por isso fiquei por aqui ? contou a ressentida Niède. ? Estou absolutamente desiludida com o Brasil. Tenho a sensação que trabalhei os últimos 25 anos inutilmente.

Com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento e dos governos da França e da Itália, Niède se embrenhou no sertão piauiense e construiu instalações de nível internacional. Dos 172 sítios abertos à visitação, muitos são adaptados para pessoas com deficiência, e todos podem ser acessados por uma rede interna de 450 quilômetros de estradas. Ao redor do parque foram construídas 28 guaritas para o controle do acesso, instaladas a cada dez quilômetros. Durante os dez primeiros anos, a fundação manteve cinco escolas de tempo integral, com aulas de inglês e francês, para a formação de profissionais para o turismo.

? Tudo foi feito pela doutora Niède ? contou Erivan Paes Landim, de 35 anos, que trabalha como guia turístico há uma década e estudou em uma das escolas mantidas pela fundação.

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Para manutenção de todas as guaritas abertas e conservação dos sítios arqueológicos e da rede de estradas, Niède estima que seriam necessários R$ 450 mil por mês, mas desde 2014 o ingresso de recursos rareou. O número de funcionários caiu de 270 para 30, e no fim deste mês todos devem ser demitidos. De acordo com a arqueóloga, a maior parte das receitas vinha de patrocínio da Petrobras, mas as verbas foram cortadas por causa da crise. Um novo contrato com a estatal foi assinado no mês passado, mas o dinheiro ainda não foi liberado.

R$ 1 MILHÃO RETIDOS

Para tentar conter a crise, o Ministério do Meio Ambiente anunciou anteontem a liberação de R$ 969 mil, oriundos do fundo de compensação ambiental, no intuito de renovar a parceria com a Fumdham, mas a verba está bloqueada na Caixa Econômica Federal, por decisão do Tribunal de Contas da União. Apesar de a fundação atuar na conservação e manutenção do parque há décadas, não existe um contrato para a liberação de recursos.

Em comunicado, o ICMBio informa que os recursos serão liberados assim que a pendência for resolvida. O órgão reconhece a ?importância estratégica da parceria e tem total interesse na manutenção da cooperação histórica?. O Ministério do Meio Ambiente afirma que a ?decisão política do ministro de fortalecer cada vez mais a parceria com a Fumdham na administração do parque já foi tomada?.

? A questão mais preocupante é com a conservação das pinturas ? disse Melina Andrade, analista ambiental do ICMBio lotada no parque. ? Nós temos 35 vigilantes, que estão garantindo a entrada e saída dos visitantes. Eles faziam a vigilância no parque, mas tivemos que alterar a escala. Por isso, as rondas ficaram enfraquecidas.

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Segundo Melina, o ICMBio continuará cumprindo sua função de proteção ambiental e gerenciamento do parque, mas a conservação do patrimônio histórico e arqueológico caberia ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Procurado, o Iphan ainda não se manifestou sobre a situação do Parque Nacional da Serra da Capivara. Para compensar a redução da equipe de vigilância, Melina planeja o pedido de uma operação de fiscalização com analistas externos.

? Para a manutenção das estradas, só com concurso público ou contrato ? afirmou Melissa. ? Sobre a conservação, estou elaborando uma nota técnica sobre a deterioração das pinturas por causa dos mocós. Espero que consigamos encontrar uma solução para esse problema.