Variedades

Estamos mesmo humanizando cães e gatos?

O termo já virou moda e crítica é o que não falta, mas não é de hoje que os animais vem recebendo mais atenção da sociedade. O apelo é antigo, Leonardo da Vinci, Giordano Bruno, Francisco de Assis e até Nostradamus deixaram referências sobre a necessidade de considerar os animais parte integrante da Criação, fato que por si só já seria digno de respeito.

Mas não foi assim desde o princípio. Para quem séculos atrás pregava a horizontalização das relações, motivos para decepcioná-lo demos de sobra porque se somos, de fato, a criatura mais inteligente feita a imagem e semelhança do Criador, assinamos nosso atestado de incompetência no momento em que não cuidamos daqueles que ficaram sob nossa tutela, eles mesmos, os animais, criaturas para quem determinamos o destino de quem vai para o trabalho, para a guerra ou cozido em cima de uma mesa.

O sentimento de valorização do animal de companhia vem se destacando desde a década de 50, período pós-guerra em que o público passou a entender que piedade e afeto por um animal era um sentimento humanitário. Também ajudaram na formação do senso coletivo as cenas protagonizadas por Lassie e Rin-Tin-Tin, animais dotados de sentimentos cuja única finalidade era ajudar o ser humano.

De lá para cá a cachorrada invadiu os lares do mundo inteiro e ganhou uma força até agora desconhecida. Embora existam exageros, quando se nutre afinidade por animais tratá-los com doçura não significa, necessariamente, que os estamos humanizando, quando na prática estamos humanizando a nós mesmos. É, estamos virando gente. Um olhar solidário a uma criatura que não é da nossa espécie é algo extraordinário que pode até justificar aquele velho conceito, valor auto-atribuído que nos coloca acima de qualquer animal, mas se os amamos e protegemos, talvez a humanidade não seja tão egoísta assim.

Consideração não deixa de ser uma forma de compaixão, de humildade, o reconhecimento de que talvez eles sejam, sim, nossos irmãos, como já diziam filósofos de outras épocas, opinião já consagrada em algumas doutrinas como o budismo e o espiritismo.

O que estamos fazendo em alguns casos pode parecer exagerado, mas via de regra não é descabido gostar, dar atenção e proteger um ser mais frágil, um ato compensatório, na verdade, um pedido de perdão coletivo, uma oportunidade de acertar as contas com a própria Criação a quem, aliás, muito devemos, a começar pelos gatos, adoradores de satanás queimados em fogueiras no período da Inquisição, e terminando com os cavalos, força que foi involuntariamente levada aos campos de batalha, locais onde morreram com patas amputadas, olhos furados e corpos queimados sem qualquer tipo de assistência. Ao longo dos séculos, abusamos de nosso poder, legitimidade que mostra seus alicerces abalados quando lançamos para animais um olhar mais igualitário.

Embora a humanidade caminhe sempre rumo ao desconhecido, a semente do direito ao bem-estar animal ganhou raízes profundas, e é justamente nos mascotes, pioneiros na conquista de nosso coração, que colhemos os primeiros frutos dessa embrionária horizontalização de nosso afetos, convicção que faz alguns desistirem do consumo de qualquer produto de origem animal, quem sabe um dia uma regra mundial. Até lá tem muito que ventar e chover, mas não pensarmos apenas em nós mesmos já é um sinal de evolução, e um dos critérios para avaliar o desenvolvimento de uma sociedade é justamente o modo como a população trata de seus animais. Humanizar, então, não é nenhuma tragédia, mas uma adaptação, a mola propulsora para o começo de uma nova era pois se pretendemos ser bons humanos precisamos, antes de tudo, aprendermos a ser bons animais.