Cotidiano

Especial 100 anos de samba: sangue negro, história mestiça

20390509_Rio de Janeiro RJ - 02-12-1966 - Donga Ernesto dos Santos - Compositor - Foto Arquivo - Agê.jpgRIO – Se tomarmos ?Pelo telefone? como marco fundador, o samba nasceu como uma obra coletiva. Foi gerado no Rio, na casa de uma baiana, Ciata, com instrumentos vindos de diferentes culturas, a partir de estruturas melódicas e rítmicas que refletiam tradições rurais e urbanas. Ou seja, seu sangue é negro, mas sua natureza é mestiça desde o berço. E isso, em grande medida, permitiu que tivesse chegado ao centenário com penetração e relevância que seguem inquestionáveis. O historiador Luiz Antonio Simas explica que a trajetória do gênero é tomada pela dinâmica da mistura ? mas com uma tensão muito maior do que a suposta no ?mito da mestiçagem cordial?.

? A história do samba se inscreve em um contexto complexo de negociações, cheio de sutilezas. Em certo sentido, pode-se observar que o desenvolvimento do samba é cheio de lances, até concomitantes, de adesão, resistência, afago, porrada, confronto, negociação e adequação ? nota Simas. ? O samba sempre andou no fio da navalha, lidando o tempo todo com o conflito entre o desejo de expressar suas tradições, concepções de mundo e bens simbólicos e a necessidade, para que esse desejo seja realizado, de atendimento às exigências de instâncias aparentemente fora do ambiente do samba.

O historiador lista algumas das instâncias com as quais o samba negocia hoje:

? O poder instituído, a indústria turística, a indústria fonográfica, as novas mídias ou o crime, por exemplo. É exatamente por essas rasuras, por esses cruzamentos, pelo aparente paradoxo entre tradição e transformação, que no caso do samba acabam se complementando, que ele se mantém potente até hoje.

Alfredo Del-Penho mostra as características que marcam o samba

Martinho da Vila chama atenção para a questão racial, central nessa trajetória de 100 anos ? e nas mudanças por que o samba passou neste período:

Links Especial 100 anos de samba? Este centenário que comemoramos agora é de um samba com outra estrutura, mais maxixe. E feito por pretos. Negros com alguma inserção na sociedade, como Donga, Pixinguinha, João da Baiana… Mas negros. Depois veio Ismael, a turma do Estácio, que mudou o samba e dizia que o que o pessoal anterior fazia não era samba. Mas foi Noel Rosa que levou o samba para a cidade, a classe média. Subiu o morro, fez parceria com Cartola, Ismael, trocou informações, bebeu no fonte deles. Pra muita gente da época o samba nascia com Noel.

O processo de ?embranquecimento? do samba é dissecado por Simas, levando em conta o contexto político (do Estado Novo) e econômico:

? Sobretudo a partir da década de 1930, foi estratégia sistemática tirar o samba das mãos dos pretos que o criaram, amaciá-lo para a indústria fonográfica e para o Estado, preocupado em construir um discurso identitário baseado no mito da mestiçagem cordial, atenuando a rítmica macumbada que caracterizava os tambores centro-africanos redefinidos no Brasil. Era necessário apagar o fato de que a maior e mais vigorosa invenção cultural do Rio foi obra de uma turma do Estácio formada por marginais, rufiões, jogadores de ronda, malandros com folha corrida, pequenos trambiqueiros, moços que morreram assassinados, sifilíticos e malucos, batuqueiros das porradas na balança, babalorixás, cambonos, ogãs, trabalhadores informais de viração.

Embranquecido, amaciado, amansado… Nada muda a origem e a espinha dorsal negra do samba, que Martinho reforça ao refutar a polêmica sobre onde o gênero nasceu, lançando-o num terreno mítico que desafia tempo e espaço:

? A coisa de dizer que o samba nasceu na Bahia ou no Rio não é legal. Ele pode ter nascido em qualquer lugar onde tinha escravo e batuque. O samba nasceu em todo lugar ao mesmo tempo.

Os subgêneros do samba