Cotidiano

Quem não tem uma professora na memória?

Um dom que admiro no ser humano é a intimidade que alguns desenvolvem com os números. Intimidade mesmo, algo assim, só entre eles, uma relação construída a partir de alguma parte do cérebro que convida os números para sentarem e tomar um cafezinho, tão próximos são um do outro. Essa tal de matemática, cuja pronúncia já me traz calafrios, trata assim com quem nutre afinidade, uma seleção marcada no DNA, porque tem que vir do DNA essa facilidade, já que todos na minha família precisam da maquininha de calcular para saber quanto é 214 + 87 / 43 x 5, enquanto outros, que tem um mapa de números na cabeça, sei lá, respondem com a serenidade de uma nota musical, facilidade que me corrói de inveja, daí eu não chegar muito perto dessas feras na matemática, pessoas para as quais números não tem segredo.

Toda essa história  foi para dizer que matemática nunca foi meu forte. Na verdade nunca foi coisa nenhuma porque, com exceção da sétima série do ensino fundamental, sempre passei de ano com nota mínima para aprovação. Não sou amiga dos números, amizade que começa bem quando a conversa é com palavras, estas que dormem debaixo do meu travesseiro e que me acompanham até debaixo do chuveiro. Mas tenho que torcer meu nariz e admitir que a matemática teve lá sua participação nas grandes lições que tive na vida. Não, querida, não foi por sua causa, mas por quem um dia tentou me explicar como você, sua ingrata, funcionava.

Se chamava Liliana e era professora da dita cuja, matéria  que já no mês de abril acabava com o meu sono. E estávamos na série das equações, nada de muito complicado se eu soubesse o terror que viria anos depois. Liliana podia simplesmente fazer o trabalho dela, mas quis ir além. Ciente de que a esmagadora maioria dos alunos não gostava da disciplina, ela muito se esforçava para ser compreendida. Nas palavras dela, e com palavras a compreensão chega ao meu alcance, matemática até tinha lá algumas fórmulas e equações sócias do Clube da Cultura Inútil, mas via de regra era aplicada em diversos momentos de nossa vida. “Querem conhecer o cálculo para se passar no vestibular”?

E não é que deu resultado? Ali, pela primeira vez, fiz as pazes com a dita. Sim, ela tinha seu valor e até comecei a pronunciá-la sem ter brotoejas pelo corpo. “ Tirei 8 em ma-te-má-ti-ca, viu? Sim, aquela com acento no segundo ‘a’. Pois é. Estamos ficando amigas”. Era possível uma aluna 100% português tirar 8 em matemática? Sim, é, ainda mais quando se tem uma professora que tirou 4 das 7cabeças do bicho que a matemática representava em nossas vidas.  Naquele tempo, com a matemática engatei um namoro, e até senti falta dela nas férias de verão, mas casamento, que é bom, não rolou. Ano seguinte, outra professora entrou no circuito e lá fui eu pro seis naquela matéria terrível que de novo perdi a vontade de pronunciar.

No 15 de outubro lembro dela. Da Liliana, não da matemática. Talvez a professora esteja aposentada – não tem facebook para ser encontrada –  mas faz tantas décadas que talvez até já esteja lá em cima, ao lado do Homem que inventou o mundo, o mesmo que nos mandou tirar o sustento com o nosso próprio trabalho, este que a gente faz depois de passar pela escola, e obviamente pela matemática. Talvez por isso o Cara Aquele tenha piedade e de vez em quando envia pra o mundo dos simples mortais uma mente dessas, brilhante, dotadas ainda com a singular capacidade de gostar de crianças, gostar de ensinar e, sobretudo, gostar de compreender as limitações alheias.

Liliana Rebelato, receba aqui meu forte abraço, mesmo sendo você uma fera das mais competentes.

Vivian Weiand