RIO ?Nos últimos 15 anos, Jonathan Franzen se dedicou a retratar a vida nos Estados Unidos do século XXI usando uma forma típica do século XIX: o romance realista. Suas obras mais conhecidas, ?As correções? (2001) e ?Liberdade? (2010), partem da história de uma família para criar um amplo painel social, como faziam escritores daquela época que ele admira, como o inglês Charles Dickens e o russo Leon Tolstói. O sucesso dos dois livros levou Franzen à capa da revista ?Time?, carimbado com o título de ?Grande romancista americano?.
Em seu novo romance, ?Pureza? (Companhia das Letras), Franzen volta os olhos outra vez para uma família ? ou para o que sobrou dela. A protagonista do livro, Pip Tyler, é uma jovem de 22 anos que não sabe quem é seu pai, porque sua mãe, uma mulher reclusa, sempre se recusou a revelar a identidade dele. Com uma estrutura fragmentada, ?Pureza? percorre seis décadas e três continentes para narrar as vidas dos personagens que se envolvem na busca de Pip por essa resposta.
Assim como em seus livros anteriores, Franzen faz de ?Pureza? também um painel da sociedade. Desta vez, um de seus focos é nossa relação com a cultura digital. Em sua busca pelo pai, Pip se envolve com figuras como Tom Aberant, um jornalista que edita um site investigativo, e Andreas Wolf, um personagem com toques de Julian Assange que lidera uma organização semelhante ao Wikileaks. Neste romance sobre enigmas familiares, a internet é retratada como vitrine de segredos públicos e particulares.
Em entrevista ao GLOBO por telefone, de Nova York, Franzen explica por que fez da internet um dos temas de ?Pureza?. E diz que, assim como os realistas do século XIX, ele tenta criar em seus romances ?um mundo completo?, onde ?tudo faz sentido?, em contraponto à fragmentação da cultura digital: ?Acredito que hoje há um desejo no mundo por narrativas que transmitam essa sensação?, diz.
Parte importante de ?Pureza? é dedicada à nossa relação com a cultura digital. Por que decidiu abordar esse aspecto do mundo atual?
Sou um escritor realista, estou interessado no mundo como ele é, não em como deveria ser. E a verdade é que, assim como muita gente, passo boa parte do meu dia em frente ao computador. Quando percebi que este seria um romance sobre segredos, sobre informações que escondemos uns dos outros, logo me ocorreu que o mais impressionante no mundo digital é que ele praticamente exige a exposição total da intimidade. As grandes empresas do Vale do Silício, que fazem fortunas manejando nossos dados pessoais, querem nos convencer de que o mundo será um lugar melhor se toda informação estiver disponível para todos. Isso me parece uma forma tola de idealismo. Só um garoto de 17 anos acredita que o mundo seria melhor se todo mundo soubesse a verdade sobre os outros o tempo todo. Qualquer um que já tenha vivido um relacionamento longo sabe que essa é uma péssima ideia.
Você já escreveu sobre as relações entre a cultura digital e a cultura literária. Quais são as diferenças entre elas, na sua opinião?
As redes sociais criam uma noção nova de identidade, em que aquilo que compartilhamos é mais valorizado do que o que guardamos para nós. Mas boa parte da literatura dos últimos 100 anos foi justamente sobre pessoas que não conseguiam se encaixar no que o mundo espera delas. Juntar-se à multidão pode ser bom em alguns aspectos, mas também é perigoso, porque pode ser uma forma de conformismo. Sinto que escrevo meus livros para aquelas pessoas que não se encaixam, que não se conformam com ideias simples como a de que a revolução digital vai resolver tudo. Há um tipo de personalidade que não está interessada no que está sendo vendido, e sim no que não está sendo dito. É para elas que escrevo.
A protagonista do romance, Pip, tem 22 anos. Quais foram os desafios de criar uma personagem jovem no mundo atual?
Bom, eu também já fui jovem? Mas, claro, Pip é jovem hoje. Foi engraçado escrever sobre ela, porque lembro que, aos 22 anos, eu era muito seguro de minhas posições morais, achava que sabia de tudo. No romance também visitamos a juventude dos personagens mais velhos e, para mim, foi muito divertido mostrar como o mundo vai desgastando as convicções morais deles. O moralismo é uma forma de autoengano, e autoengano sempre rende boa comédia. Pip é derivada do meu convívio com os jovens hoje, e a impressão que tenho é que eles têm menos certezas do que na minha época, têm uma abordagem mais irônica do mundo.
Você falou sobre as ?posições morais? dos personagens de ?Pureza?. Qual é a dimensão moral do trabalho do escritor?
Não acho que seja dever do escritor prover instrução moral, mas a moral é uma dimensão importante da experiência humana, portanto é assunto para o romance. Quero que o romance seja um mundo completo. Em ?Pureza?, todos os personagens são motivados por um impulso moral e ético. Não quer dizer que eu compartilhe desses princípios, até porque muitas vezes faço troça deles. Mas o romance está mais equipado do que qualquer outra forma de arte para lidar com nossa complexidade moral, porque a literatura consegue ir mais fundo na mente do personagem.
Você disse que se considera um ?realista? e já falou várias vezes da admiração pelos realistas do século XIX, como Dickens e Tolstói. O que os leitores de hoje ainda podem aprender com os autores daquela época?
A boa televisão passou a fazer muito do que os escritores realistas faziam no século XIX, então não precisamos mais escrever exatamente daquele jeito. Mas, para mim, a característica mais notável do romance realista do século XIX é que você se sente dentro de um mundo completo, numa narrativa com sentido. No mundo digital em que vivemos, micronarrativas competem umas com as outras, e é difícil criar sentido a partir delas enquanto lá vem mais um tuíte, lá vem mais uma notícia. O prazer de ler Tolstói é que, durante a leitura, tudo faz sentido. Acredito que hoje há um desejo no mundo por narrativas que transmitam essa sensação. São como um contrapeso ao mundo digital.
Ainda é possível fazer isso como escritor?
Bem, eu continuo tentando.