Cotidiano

Convidados pelo Globo, André Vianco e Braúlio Tavares escrevem contos na Flip

PARATY — Durante a mesa “Fantasias à brasileira”, nesta quinta, no Sesc de Paraty, o escritor e pesquisador Bráulio Tavares mencionou que Edgar Allan Poe criou o romance policial a partir do tema “A morte de uma bela mulher”. A convite do GLOBO, ele e o autor paulista André Vianco escreveram dois contos fantásticos com o mote “A morte de uma bela mulher na Flip”, em apenas 14 minutos, referentes à 14ª edição festa literária.

“A morte de uma bela mulher”, por Bráulio Tavares

Serei teu por toda vida, e serás minha a vida inteira. Foi minha jura e minha cobrança a Yolanda, num daqueles acessos de fervor da paixão que nos redemoinhava. Quando a conheci veio-me à mente aquela galeria de personagens de Edgar Allan Poe, aquelas mulheres altivas de pele branca e cabelos muito negros, mulheres de imensa erudição que pareciam pairar acima da humanidade comum, e, acima de tudo, mulheres de uma beleza sobrenatural. A ideia de perder Yolanda para outro homem não me assustava enquanto eu tivesse forças para erguer uma arma. Assustava-me a ideia de perdê-la para a morte, porque, como sabem os leitores do poeta do “Corvo”, não existe tema mais poético do que a morte de uma bela mulher. Yolanda foi minha, tornou-se minha, será sempre minha mesmo no instante em que a contemplo imóvel, os olhos fechados. Não a perdi para homens mais ricos, mais encantadores, mais másculos do que eu. A paixão dela por mim foi tão repentina e inexplicável que só posso descrever o acontecimento como um raio que se abateu sobre nós dois, e nos fundiu num único ser. Viajeio com ela pelo Brasil e pelo mundo. Corremos perigo de vida numa explosão em Paris, numa caçada no vale do Serengeti, num naufrágio nas ilhas gregas. A morte nunca me assustou, porque eu sabia que enquanto minha vida estivesse ligada à daquela mulher misteriosa eu seria, como ela, imortal. Em suas veias corria talvez o sangue das feiticeiras das tribos de Kôr, porque eu a sabia eterna e enquanto eterna, sempre ao meu lado. Como explicar, então, essa morte em plena Flip, por entre as pedras desconjuntadas das ruas de Paraty? Como aceitar o inominável, o impossível, quando ele nos atinge em pleno peito com a força de um segundo raio que cancela a invulnerabilidade trazida pelo primeiro? A morte de uma bela mulher. É o pensamento que me assalta e me rói por dentro enquanto bebo, olhando o rosto imóvel de Yolanda, seus olhos fechados, na penumbra do quarto, mexida sem cessar pela cortina que se agita com o vento que passa pela fresta. Na hora do raio, na hora do milagre, foi essa morte que temi, e pedi que Yolanda fosse eterna. Queria poupar à minha paixão essa queda no mundo das pessoas reais. E hoje penso, vejo, bebo constatando a desgraça final. Ei-la aqui deitada no silêncio da pousada, pousada ela própria sobre a cama como uma ave prestar a arremeter voo novamente. Uma bela mulher morreu nos meus braços; não me um momento para o outro, mas ao longo dos anos. Uma bela mulher morre e continua viva, como Yolanda, aqui, trôpega sobre as pedras de Paraty, agarrada ao meu braço e à bengala; Yolanda adormecida para sempre, ressonando ao meu lado, a mulher mais bela do mundo, que morreu e está sepultada no interior desta velhinha que ressona para sempre ao meu lado. FIM.

“Nada mais importa ou A morte de uma bela mulher (na Flip)”, por André Vianco

Quando ela ligar, dizendo que está chegando ao quarto, assim que puser o pé na pousada vou dizer a ela todas as verdades que vim colecionando pela Rio-Santos. Sai cedo de casa para nos encontrarmos mais uma vez aqui, a feira que serve de cais para as nossas impossibilidades. E sempre voltamos. Voltamos para nossas vidas, nossos compromissos, nossas realidades, ela rumando para o norte, eu indo para o sul. A feira nos reúne e nada mais. Penso no amor. Penso que a quero mais que tudo, mas não serei mais um dia marcado no calendário, um compromisso literário. Direi a ela tudo. O combinado é que ela ligue. É sempre assim. Eu a esperando. Quando meu celular tocar vou falar dessas coisas que estão na minha garganta, entaladas, engarrafadas, sem jeito de voltar para trás. É agora ou nunca. Meu combustível, todos os anos, é sentir seus cheiros, é visitar suas belezas e mergulhar dentro dela querendo eternamente estar ali, deitado ao seu lado, apaziguado. Já amoleço dobrado pela memória, pelas lembranças e sonhos. Ela não é porto seguro, é a tempestade, com toda sua glória selvagem, sua ventania e seus relâmpagos em alto mar. Mesmo que ela seja assim tão forte, hoje serei mais. Mesmo que ela seja assim tão bela, hoje eu serei mais. Serei o porto seguro para a nau fugida do alto mar. Dessa vez é ela que se atracará em mim quando eu disser que não irei mais voltar. Não me importo mais. É preciso se libertar dessa captora. Assim que ela ligar vou dizer tudo o que pensei. Ela ficará ao meu lado para sempre. Seremos barco e carro, indo para o norte ou indo para o sul, não importa mais, mas indo juntos, lado a lado, com chuva e trovoada, mas com vento em popa, soprando para mim. Hoje é ela quem vai sonhar a noite e sentir saudade dos cheiros e da pele. Assim que ela ligar tudo vai mudar. Tudo vai ser diferente como nunca foi. Hoje eu sou poderoso, hoje eu sou furacão e não me vergarei para nenhum ventinho que venha do outro lado da estrada, do outro lado do oceano, que venha de qualquer travessia. Hoje meu caminho é que é importante. Eu vim até aqui por causa dela mais uma vez, a última vez. Prometo. Quando ela ligar ela vai saber de tudo que andei pensando e terá que entender meus motivos, minhas intenções. Terá que ser do meu jeito. Não moverei um centímetro. Não exalarei mais nenhum hausto. Ela que se mova, ela que deseje, ela que me queira, ela que pegue a estrada e venha quantas vezes eu quiser. Assim que ela ligar. As horas passam e meu coração se arrefece um pouco. Ela não liga. Ela não liga. O celular vibra. A música una toca e enche o ar. É ela. Meu coração dispara e uma brisa fria entra pela janela. A brisa com cheiro de chuva. Com cheiro de mudança. A voz não é dela. Não é Gabriela. Meu telefone estava salvo como emergência. Ela não liga. A voz do policial rodoviário da Rio-Santos, nem do sul nem do norte, diz e anuncia que a tempestade já passou e agora ela é calmaria para sempre. Ela não liga. Nada mais importa.