Cotidiano

Prêmio da Música Brasileira homenageia Gonzaguinha, que terá inéditas lançadas

RIO – Depois de 26 edições, era inevitável que o Prêmio da Música Brasileira acabasse homenageando Luiz Gonzaga de Nascimento Júnior, o Gonzaguinha (1945-1991), um dos grandes cantores e compositores que se notabilizaram na MPB a partir dos anos 1970. Mas, antes de pensar em celebrar o autor de popularíssimas canções como “Não dá mais pra segurar (Explode coração)”, “Sangrando”, “O que é, o que é?” e “Lindo lago do amor”, o que veio à cabeça de José Maurício Machline, diretor-geral e idealizador do prêmio (cuja cerimônia acontece nesta quarta-feira, no Teatro Municipal), foi um conjunto de memórias íntimas acerca do artista.

— Fui fazer um show com o Gonzaguinha em Manaus e foi pedido que não se falasse sobre política. Fui contar isso, e ele fez justamente o contrário. Ficamos um tempo estremecidos, mas um dia ele foi ao meu escritório para pedir desculpas. Estava gravando um disco e perguntei se não queria cantar “Contrato de separação” (canção de Dominguinhos) comigo. E ele cantou — conta Machline, que foi uma das primeiras pessoas a ouvir “Explode coração”. — Gonzaguinha tinha acabado de fazê-la, e me mostrou no violão. Acho que foi uma das maiores emoções que tive com uma canção. As composições dele têm uma contemporaneidade rara. Algumas, parece que ele fez ontem, como “É”, que tem mais de 30 anos e é um retrato fiel do Brasil de hoje.

A atualidade da obra de Gonzaguinha atrai o interesse sobre o arquivo praticamente inexplorado deixado pelo artista — cadernos e fitas que reúnem entre 15 e 20 canções inéditas. Duas delas foram pinçadas para “Toda pessoa pode ser invenção”, álbum que a cantora Fernanda Gonzaga, filha do compositor, lança ainda neste ano: “Relativo” e “Aprender a sorrir”.

Irmão de Fernanda, Daniel Gonzaga fala do desejo de que o material do pai, gravado de forma caseira, chegue ao público como um disco.

— São músicas gravadas no formato violão e voz, com uma bateria eletrônica. A ideia é processar isso para que possamos separar cada instrumento, adicionar outros, convidar pessoas para cantar com o velho. Afinal, as músicas eram feitas para intérpretes específicos , ele deixou isso registado — conta Daniel, que concorre com um samba-enredo na Estácio de Sá, que homenageia Gonzaguinha no carnaval de 2017.

Fernanda diz que as anotações trazem inclusive indicações de arranjo:

— Meu pai era virginiano, era chato com isso. Sempre foi assim, ele não era do tipo que gravava a voz e ia embora, o patrão. Ele acompanhava tudo, e sempre junto dos músicos.

Outra vontade da família é lançar um livro com a transcrição de entrevistas que Gonzaguinha fez com seu pai, Luiz Gonzaga (1912-1989). Essas fitas foram uma das bases do roteiro de “Gonzaga — De pai pra filho” (2012), de Breno Silveira.

Júlio Andrade, ator que interpretou Gonzaguinha no filme, será um dos apresentadores da cerimônia do Prêmio da Música Brasileira. A sugestão veio da filha de Machline, a diretora de TV Giovanna Machline. O criador da premiação marcou um encontro com o ator:

— Não encontrei Júlio, encontrei Gonzaguinha.

Camaleão que já interpretou Raul Seixas e Paulo Coelho, Júlio Andrade guarda memórias da infância de ver o pai “arrepiado, batendo no painel do carro”, cantando “Um homem também chora (guerreiro menino)”, que agora ele próprio vai interpretar na premiação.

— Eu adoro quando lembram do meu trabalho pelo Gonzaguinha — comenta o ator, que passará a cerimônia inteira na pele do personagem. — O que quero, no dia do prêmio, é estar com o coração aberto, sentindo a energia das pessoas que gostam das músicas dele.

Júlio divide com a atriz Dira Paes a apresentação da premiação. Ela atua como mestre de cerimônias (como em 2015), mas faz uma cena com Júlio/Gonzaguinha na pele de Dina, mãe de criação do cantor.

— Espero que essa noite seja uma experiência com Gonzaguinha — diz Dira.

Pelo terceiro ano consecutivo, o roteiro da cerimônia foi escrito pela cantora Zélia Duncan, que vem a ser a artista com mais indicações ao prêmio em 2016 — cinco — pelo CD “Antes do mundo acabar”. Ela (que cantou muito Gonzaguinha na noite, mas nunca gravou uma música dele) recebeu o desafio de escrever um texto com alta dose de dramaturgia, em que o apresentador relata a vida do artista em primeira pessoa. Para isso, mergulhou de cabeça em material biográfico.

— Não conhecia o temperamento do Gonzaguinha. Sabia que ele era considerado tímido, carrancudo, mas tudo tem dois lados. O lado sol dele era doce, muito carinhoso com quem o conquistava — descreve Zélia. — Gonzaguinha exorcizava tudo em carne viva, explicitamente. Daqui pra frente, quando ouvir “Sangrando”, vou saber que é literal. Ele é um típico sobrevivente.

Violões de Bosco, Gil e Lenine juntos

A parte musical do prêmio — como de costume, organizada pessoalmente por Machline — será marcada em 2016 por uma ausência.

— É muito difícil fazer Gonzaguinha sem pensar na Maria Bethânia, que foi quem mais interpretou suas músicas. Mas no ano passado ela cantou “Explode coração” no encerramento do prêmio, depois fez uma turnê em que cantou Gonzaguinha. Era uma redundância ela estar neste ano — desculpa-se o diretor-geral.

“Explode coração” ficou com Ney Matogrosso. “Grito de alerta”, foi para a dupla Luiz Melodia e Ângela Rô Rô. “Sangrando” terá Filipe Catto e Simone Mazzer. A banda Dônica vai de “Lindo lago do amor”, e a Criolo coube a indignada “Comportamento geral”. Os filhos de Gonzaguinha Daniel, Fernanda e Amora Pêra trançam vozes em “Redescobrir”. E o primeiro número da festa (que terá transmissão ao vivo do Canal Brasil) será um “Galope”, cantada e tocada por três músicos que, como diz Machline, “são a síntese do violão brasileiro”: João Bosco, Gilberto Gil e Lenine.

O Prêmio da Música Brasileira, que pela primeira vez tem patrocínio do Banco do Brasil, se estende numa turnê, que começa no dia 2 de julho, em Porto Alegre, e que passará ainda por Brasília (dia 7), Goiânia (9), Salvador (22) e Rio de Janeiro (29 e 30). Canções de Gonzaguinha serão interpretadas pelas vozes de Gal Costa, Ivete Sangalo, Elba Ramalho, Zeca Baleiro, Lenine, Zélia Duncan e Maria Gadú. E, até o fim do ano, Filipe Catto e Simone Mazzer percorrem um circuito do Centro Cultural Banco do Brasil num show com músicas do compositor.

Na esteira do recorde de indicações para Zélia Duncan, veio uma polêmica. O compositor baiano Roque Ferreira (que concorria com Zélia a melhor álbum de samba por “Terreiros”) declinou da indicação acusando a colega de não ser sambista, mas oportunista. A cantora respondeu em sua coluna em O GLOBO: “Sou um paradoxo com duas pernas, tanto que ainda te amo!”. José Maurício Machline opina:

— Sempre tive boa relação com Roque, ele cantou no prêmio em 2015, mas é uma pessoa surpreendente. Se a Zélia quis cantar o samba, por que não pode? Rita Lee gravou um disco de bossa, e não lembro de Tom Jobim e João Gilberto virem a público dizer que Rita era uma oportunista.