Cotidiano

Morena Nascimento: um olhar sobre o mundo, a mulher e o amor

cena_brasil_internacional_2016_-_morena_nascimento_-brasil-_atua_e_assina_a_direção_de_'reverie'_-_foto_divulgação_vitor_vieira_5.jpgRIO – Falar sobre a evolução das artes cênicas no século XX e deixar o nome de Pina Bausch (1940-2009) de fora seria praticamente uma heresia. A alemã, criadora da companhia Tanztheater Wuppertal, onde desenvolveu a linguagem cunhada de “dança-teatro” foi uma pioneira do esgarçamento das fronteiras nas artes e, merecidamente, recebeu uma bela homenagem na forma do documentário “Pina” (2011), dirigido pelo conterrâneo Wim Wenders.

A brasileira Morena Nascimento, que participou da companhia entre 2007 e 2009, e ainda mantém seu vínculo com o grupo como bailarina convidada, apresenta pela primeira vez no Rio de Janeiro o solo “Rêverie”, uma das obras que abrem o festival Cena Brasil Internacional (saiba mais sobre o festival). O espetáculo estreou na Alemanha em 2014, por ocasião do festival Pina 40, celebrando o aniversário da Tanztheater Wuppertal.

Montado em parceria com a diretora, dramaturga e performer gaúcha Carolina Bianchi, “Rêverie” partiu de fotomontagens que a alemã Gertrude Stern criou para a coluna “A psicanálise ajudará você”, da revista argentina ?Idílio?. Como revela em entrevista ao GLOBO, as interpretações sobre os sonhos enviados pelas leitoras à coluna foram uma porta de entrada para o inconsciente dessas mulheres e de seus “devaneios”, tradução da palavra francesa que dá título ao espetáculo.

Como foi o processo de criação de “Rêverie”?

Vi uma exposição de fotos da Grete Stern no Malba em Buenos Aires em 2012 numa montagem magnífica onde a gente entrava numa sala escura e somente as fotos ficavam iluminadas. Eu não conhecia o trabalho dela, mas nesse momento senti que essas imagens já me habitavam há milênios. Era como se eu mesma tivesse registrado essas imagens. Acho que é porque elas evocam um universo feminino muito forte, denso, misterioso e provocativo e esse universo sempre foi um pouco do meu objeto de atenção e desejo quando penso em criar cenas. Antes de criar, evoco sempre uma paisagem e logo depois uma mulher nessa paisagem. E daí tudo parte. Nunca criei danças partindo de movimentos, mas quase sempre de imagens. O trabalho da Grete é um prato cheio nesse sentido. Essa fotomontagens meio surrealistas, soturnas, ilógicas e fragmentadas que ela criou, retratando a mulher dos anos 40 e seu inconsciente livre, sem filtros e cheio de fantasia e sonho… isso é fascinante pra mim porque revela esse lugar que a sociedade sempre tenta reprimir (até hoje!) nossos desejos, nossos sonhos, nossa liberdade, nossos paradoxos.

O “Rêverie” partiu dessas imagens quando começou a ser criado mas é mais que isso também. Além desse tom de colagem que a cena ganhou com essas associações ilógicas e surreais do universo da mulher, ele também fala de amor e de tentativas de comunicação que são sempre interrompidas. A gente não sabe quando o texto começa e a dança termina e vice-versa, e isso traz essa força para a relação entre a dramaturgia e a dança, essa parceria que gosto tanto com a Carolina Bianchi. Para mim, o “Rêverie” é meu trabalho mais bem resolvido no sentido da comunicação com o público, acho que justamente por falar sobre esses ruídos de comunicação e essa fala fragmentada e interrompida que a gente vive hoje.

Esse trabalho já vem sendo apresentado há algum tempo. Como é sua relação afetiva com ele?

O processo de criação dele foi a coisa mais deliciosa e fluida de todos os meus trabalhos. Meu encontro com a Carolina é de uma liberdade imensa. A gente diz SIM o tempo todo para o caminho que nossas inspirações apontam e foi um grande alívio pra mim ter encontrado uma artista assim porque tínhamos essa empatia o tempo todo no que diz respeito a uma ausência de preconceitos e métodos engessados de criação. Ela não é simplesmente uma dramaturga que veio com um texto pronto e eu também não me coloquei como uma bailarina que cria, executa movimentos e falo os textos da Carolina. O “Rêverie” não é um encontro de linguagens (dança e teatro) mas é o resultado de como olhamos pro mundo, para a mulher, para o amor. É um prazer maluco apresentar ele. As vezes esqueço que estou em cena. Ele é difícil de executar porque me exige ser muitas coisas ao mesmo tempo mas isso faz todo o sentido pra mim que nunca senti capaz de fazer uma coisa só.

Fico curiosa com como o público estrangeiro vai dialogar com “Rêverie”, porque no trabalho tem a presença de textos híbridos compostos por palavras de vários idiomas e temperamentos, às vezes típicos do Brasil e as vezes de culturas distantes da nossa. Eu fico passeando entre ser uma coisa e outra, em falar e dançar. É mesmo um grande devaneio.

Quais são as suas expectativas para o festival?

Achei a programação do festival intrigante porque não conheço quase nenhum grupo e isso me faz querer assistir. Também tem uma expectativa de como os artistas de outros países vao dialogar com meu trabalho. Eu tenho uma sede de me comunicar e o público pra mim é bem importante, é o que faz viver um trabalho. O “Rêverie” foi estreiado na Alemanha e depois viajou pra algumas cidades da França e mesmo com textos falados em português, sinto que o trabalho consegue comunicar, justamente porque há interrupção o tempo todo, seja pela dança ou por palavras em outros idiomas.

Como você vê a questão do cruzamento de fronteiras de linguagem no seu trabalho?

Esse cruzamento sempre foi bem natural pra mim. Eu nuca trabalhei de outra maneira. Nem saberia dizer como é trabalhar com uma linguagem só. Minha dança nasce de um instinto e de uma necessidade de me comunicar então se eu precisar cantar, falar, escrever uma carta em cena ou ficar parada, tudo será dança pra mim, um ato poético, sem barreiras.

A curadoria do festival, neste ano, tem uma proposta de trazer trabalhos que falam sobre as relações do homem com a sociedade, e com os diversos conflitos derivam: machismo, opressão de diversos grupos, contestação política, etc. Qual a importância de abordar esses temas no momento em que estamos vivendo?

Vejo como um movimento de resistência importantíssimo. A arte continua, independente da situação do país. É ela que que tem o poder de acessar mudanças profundas dentro de nós e fazer desse mundo um lugar mais bonito pra estar. A maneira como me posiciono politicamente neste momento é simplesmente continuando a dançar. Pra mim não há nada mais político do que um corpo movendo em completa liberdade.

SERVIÇO

“Rêverie” – parte da programação do Festival Cena Brasil Internacional

ONDE: Teatro 2 do CCBB – Rua Primeiro de Março, 66 (3808-2020)

QUANDO: 01 e 02 de junho, às 19h30m

QUANTO: R$ 20 (inteira)

CLASSIFICAÇÃO: 12 anos