Cotidiano

Mahar: o jornalista que descrevia porcas e parafusos em textos cheios de emoção

INFOCHPDPICT000059145325RIO – Devoto de Nossa Senhora da Combustão Interna, ele nunca se conformou em transcrever releases ou se ater aos números da ficha técnica. José Rezende-Mahar punha emoção em qualquer tema que envolvesse porcas e parafusos. Loquaz e bem-humorado, o jornalista automotivo dirigiu de tudo, até o Rolls-Royce presidencial, e conquistou muitos fãs com seus textos publicados em revistas como ?Vela & Motor?, ?Motor 3?, ?Ele Ela? e ?Manchete?. Por mais de dez anos, ele colaborou com o CarroEtc, escrevendo, fotografando ou, simplesmente, com papos intermináveis ao telefone (em geral, na hora do fechamento).

? Os textos dele eram uma bagunça, palavras despejadas caudalosamente. Lá ia o repórter novato desembaraçar linha por linha, incluir o como, o quando, o onde, o por quê. Do original, sobrava uma frase. A frase que eu jamais seria e serei capaz de escrever, como ?A Ferrari tão preciosa que estava condenada a viver numa garagem, qual uma borboleta presa por alfinete a uma caixa de veludo? ? lembra o jornalista e discípulo Marcelo Moura.

Na quinta-feira, o hedonista e desregrado Mahar foi acelerar em outras estradas. Ficam seus escritos, dos quais selecionamos amostras do que foi publicado no GLOBO:

Alfa Romeo 147 (26/06/2002)

Não faz muito sentido gastar US$ 35 mil num carro do tamanho de um Astra. E daí? Pela lógica econômica, todos andariam de trem. (…) Ela é amiga em todos os momentos. Não balança, permanece sob controle e nunca ameaça quem a domina. Só para os casos finais de masoquismo poderia ser feita alguma crítica a esse comportamento, por aqueles que precisam sofrer para curtir um carro.

Celta (10/07/2002)

Quando o Celta chegou ao mercado, há dois anos, seu acabamento de cela de convento desagradava aos olhos. O tão aguardado lançamento da General Motors era, na verdade, uma variação franciscana do velho Corsa.

Polo 1.0 16v (7/08/2002)

O motorzinho cresce frenético, como se não houvesse amanhã, chegando a astronômicas 7.400rpm. (…) A Volks deve ter feito um acordo com a Loctite: os pneus parecem ter cola-tudo na banda de rodagem.

Audi S3 (21/08/2002)

2002-060543-_20020813.jpgQuem acha que tração nas quatro rodas é coisa de jipe, prepare-se: vamos ter momentos de intimidade beirando o erótico com um dos mais fortes automóveis que CarroEtc já analisou. É o S3, versão vitaminada do Audi A3. O ?S? deve vir de super, de sensual, de superior, sei lá. (…) Parece inacreditável que o motor do S3, capaz de rugir como um leão enfurecido, seja primo em primeiro grau do nosso VW 1,8 litro, que até hoje move o Santana. O cabeçote é totalmente outro, com dois comandos e cinco válvulas por cilindro, além de um gordo turbocompressor, digno de um Scania. (…) É só ligar e ouvir o ?Vruum?, assim meio baixo, contido mas revoltoso. Isto é um sinal de que o buraco ali é mais embaixo, e que os usuários fracos de emoções devem procurar outra praia. (…) Vem a sensação de ser piloto de um Spitfire na 2ª Guerra. A alavanca de marchas transforma-se num manche com um botão que faz desaparecerem os lerdos caminhões que ocupam a estrada. Num crescendo de som e aceleração, outros carros somem da mira, perdão, da frente, e o S3 conduz ao Nirvana automotivo.

Stilo Abarth (18/12/2002)

Ao se ligar o motor 2.4, os cinco cilindros zumbem como um vespeiro agitado. As marchas se encadeiam rápidas e o zumbido torna-se um grito que vai aumentando de tom, fazendo verdadeiras árias de loucura. (…) O difícil é andar com aquele motor insidioso convidando a indecências rodoviárias.

Norton 500 de che guevara (5/05/2004)

Os freios eram, na melhor das hipóteses, aproximativos ? mais retardadores do que freios de verdade. (…) E a eletricidade era um pesadelo. Joseph Lucas, o fabricante das partes elétricas, não ficou conhecido como The Prince of Darkness sem motivo. (…) Sem freios, sem luz, sem suspensão, sem confiança de chegar… É isso que mostra que o importante é ir, não só alcançar o destino. Esses caras eram heróis de um tempo que passou.

Fiesta 1.0 (6/10/2004)

O motorista pisava no acelerador e só ouvia gargalhadas. (…) Agora, o carrinho reage com uma energia mais condizente com outros modelos ?mil? e não deixa o motorista com ódio ao precisar de potência. (…) Pode não ser o sonho de quem ama dirigir, mas, ao menos, deixou de ser um pesadelo.

Siena a Diesel (5/01/2005)

Pela manhã, a máquina acorda ruidosamente. Há batidas e reclamações como se o mundo estivesse vindo abaixo. (…) Momento de grande prazer, só o do reabastecimento.

Chrysler 300C Touring (29/03/2006)

Apesar de ser baseada na plataforma dos Mercedes Classe E, o 300C tem aparência bem americana. Talvez com um pouco de rímel e purpurina demais. (…) É como uma perua texana que pratica boxe tailandês.

O centenário do Ford T (1/10/2008)

Há cem anos, 90% da humanidade nunca tinha se afastado mais de 30km de casa. Com o barato Ford Modelo T, homens comuns puderam comprar um carro e ver o outro lado da montanha.

Toni Bianco (20/10/2010)

Se trabalhasse em mármore, Toni Bianco teria o porte de um Michelangelo.

Ferrari 612 Scaglietti (2/02/2011)

Acelera com uma trilha sonora que é o caos e a glória ao mesmo tempo. Uma música inacreditável de uma máquina briosa e veloz. (…) Uma 612 em mãos erradas leva a atos antissociais. Dentro do túnel, as pessoas ficam apavoradas com o urro da besta-fera saindo pelo escapamento especial. (…) É uma exaltação ao automóvel em uma forma que pode estar desaparecendo. Em alguns anos, o politicamente correto forçará esses supercarros ao limbo, em nome de um mundo alegadamente mais limpo. E menos emocionante. (…) É como diz o provérbio, ?Donne e motori, gioie e dolori?. (…) Um carro para amar a estrada, para rodar mil quilômetros sem parar, em busca do pôr do sol.