Cotidiano

Escritora inglesa supera a morte do pai com a ajuda de um falcão

RIO – Alguns meses após a morte de seu pai, a escritora Helen Macdonald saiu de sua casa, no leste da Inglaterra, e dirigiu até a Escócia para pegar um falcão de dez semanas de idade. Apaixonada pelo animal e pela falcoaria desde a infância, pareceu-lhe uma boa ideia começar a domar um açor, a raça mais temida dos falcões, enquanto lidava com a tristeza. Sua experiência com Mabel, seu açor fêmea, e como a ave a ajudou a superar o luto são o ponto de partida de “F de falcão” (Ed. Intrínseca), já nas livrarias. O livro mistura memórias com uma história natural e cultural do animal, que há milênios atravessa as mais diferentes mitologias.

Pesquisadora de História da Ciência na Universidade de Cambridge, Helen vem ao Brasil para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e vai dividir a mesa “O falcão e a fênix” com a escritora Maria Esther Maciel no dia 2 de julho, às 19h30m. Em entrevista por e-mail ao GLOBO, a escritora, que já leu Clarice Lispector, Paulo Coelho e Adriana Lisboa, diz que quer conhecer mais autores brasileiros e também a fauna e a flora do país.

— Será minha primeira vez no Brasil. Quero conhecer novas pessoas e lugares. E vou aproveitar para fazer observação dos pássaros. Estou levando meus binóculos e meu guia de campo dos pássaros do Brasil. Vou ficar atenta a todos os tipos de plantas e criaturas que são tão novas para mim — conta Helen.

Sua prática da falcoaria é anterior à morte de seu pai. O que a atraiu nos falcões? Seu interesse neles mudou ao longo dos anos?

Eu tinha uma obsessão de infância por aves de rapina. Todos os meus amigos tinham fotos de estrelas pop nas paredes do quarto, mas eu tinha fotos de gaviões e falcões. Eu os achava as coisas mais perfeitas do mundo. Para ser honesta, acho que ainda são. Muitos anos mais tarde, ao descobrir que em muitas tradições culturais essas aves eram vistas como a manifestação da alma das pessoas que morreram, eu me perguntava se a perda do meu irmão gêmeo, ao nascer, era a razão pela qual me sentia atraída por eles. Meu interesse foi mudando nos anos em que convivi com falcões. Aquela reverência quase religiosa que sentia na sua presença diminuiu um pouco, ao passo que fui conhecendo-os melhor, como animais com personalidades individuais. Hoje, sei mais sobre sua complexa biologia e o seu lugar na história humana. Isso os tornou ainda mais fascinantes.

Após a morte de seu pai, você comprou um açor, uma das raças mais difíceis de domar. No livro, você descreve os açores como assassinos de sangue frio, o que não parece muito reconfortante. Por que um açor foi capaz de ajudá-la a superar o luto?

Quase sempre os açores são considerados espingardas de penas: assassinos eficientes e impiedosos. Mas não me atraíram por isso. Eles são conhecidos na falcoaria por serem muito nervosos e difíceis de domar, então eu sabia que o processo de treinamento seria uma grande distração para minha tristeza. Mas o que aconteceu com Mabel foi inesperado. Acabou que o açor era uma forma de fugir de mim. Passei tanto tempo com ela que comecei a imaginar ser capaz de ver o mundo pelos seus olhos. Ela me mostrou uma nova realidade, bela, complicada e inteiramente livre de emoções humanas. Era uma espécie de refúgio. Ela me fez esquecer quem eu era. Mabel era parte do processo que todos nós devemos passar quando perdemos alguém que amamos. Nós caímos fora do mundo por um tempo, até retornarmos um pouco diferentes. Mabel me ensinou muitas lições sobre a vida, a natureza e a mortalidade, sobre quão curtas nossas vidas são. Ela me ensinou, tanto quanto é possível, conciliar a morte com a vida e o amor.

“F de falcão” é um livro sobre o luto, mas também uma história natural e cultural dos falcões e da falcoaria. Como a obra mistura sua experiência profissional e pessoal?

Este é um livro que agrega vários gêneros diferentes. Espero que não seja só um livro de memórias do luto ou um texto sobre a natureza. Quando escrevi, só queria colocar no papel todos os pensamentos e emoções que experimentei enquanto treinei meu falcão no período do luto. Muitos desses pensamentos vieram da minha experiência como historiadora da ciência. Mas esse período com Mabel mudou a forma como eu me sentia em relação a eles. Só a partir daí compreendi a maneira como todos nós, inconscientemente, usamos a natureza como um espelho das nossas próprias necessidades. Esse é um dos temas centrais do livro, e não apareceria nele se não fossem meus anos de pesquisa.

Seu livro narra uma experiência bastante pessoal. Por que você decidiu escrevê-lo?

Mesmo no final do primeiro ano de luto, comecei a ver que o que aconteceu comigo foi mais que apenas uma história de uma mulher arrasada e um pássaro. Era uma história muito maior e mais antiga sobre como todos nós reagimos à perda. Nem todo mundo pega um falcão para criar após a morte dos pais, é claro. Eu não recomendo açores como resposta ao sofrimento! Mas nós fazemos todo o esforço para encontrar nosso caminho num mundo que se tornou irreconhecível. Eu sabia que essa era uma história que gostaria de escrever um dia, mas levei cinco anos para ter distância emocional suficiente para ser capaz de escrevê-la. Aí, a pessoa sobre a qual eu escrevia já não era mais eu mesma. Era alguém que eu podia tratar como uma personagem, mesmo que pudesse lembrar tudo que vi, senti e disse com clareza.

O falcão parece um animal selvagem indomável, bem diferente de um cão ou de um gato. Como, então, domá-lo?

A falcoaria é muito antiga, remonta há cerca de 4.000 a.C. Mas, em todo esse tempo, falcões nunca foram domesticados. No início, cada falcão tem muito medo do seu domador. É preciso paciência. Você começa a habituá-lo com a sua presença, recompensando-o com carne crua. Uma vez que ele está voando e descobre que você o observa no campo de caça, passa a ver em você um parceiro, mais do que uma fonte de comida. É uma relação muito pessoal, especialmente com os açores. Apesar de serem aves solitárias na natureza, desenvolvem laços muito fortes com os seus domadores. Mabel muitas vezes mordiscou meu cabelo enquanto estávamos assistindo à TV à noite.

Quais as dicas que você daria para quem quer se aventurar na falcoaria?

Primeiro, você precisa de tempo, dedicação e uma área aberta para se tornar um falcoeiro. Não pode simplesmente guardar um falcão num armário, como uma espingarda. Eles precisam voar, e você precisa garantir que suas necessidades sejam atendidas. É uma responsabilidade enorme. Não há muitos falcoeiros no Brasil, mas eles existem. Recomendo ler bons livros sobre falcoaria e entrar em contato com outros falcoeiros.