Cotidiano

Crítica: 'Saborosas histórias e formidáveis personagens'

Rio – No ano do centenário de seu primeiro sucesso popular, o samba começa a ganhar o que se propõe a ser sua mais abrangente obra em livro: ?Uma história do samba?, de Lira Neto. Começa a ganhar porque, neste fevereiro dos cem anos do carnaval de ?Pelo telefone?, sai apenas o primeiro dos três volumes, ?As origens?, cobrindo as décadas de 1890 a 1930.

Entre as muitas qualidades do livro está a de reunir, num só volume, saborosas histórias e formidáveis personagens dos primeiros 50 anos do samba. Ou de mesmo depois, já que no capítulo de abertura o autor se permite chegar ao ano de 1940 para lembrar o conhecido episódio de Leopold Stokovski e Villa-Lobos gravando a turma da Mangueira a bordo do navio Uruguai. São os primeiros registros do encontro da gente da morro com os maestros da chamada grande música.

Tudo isso é contado em texto agradável, claro, que trata com estilo o rico anedotário do samba. Não há, portanto, nas 342 páginas deste primeiro volume, o menor resquício do tom acadêmico que permeia muitos dos trabalhos dedicados, nas últimas décadas, à música popular brasileira.

Lira Neto associa os primórdios do samba às rodas boêmias, malandras ou mesmo marginais em que o gênero nasceu. Pouco a pouco, porém, o samba se espalha, rompe diferenças, é adotado pela classe média que antes o rejeitava e vai-se transformando em nossa identidade, em nossa música nacional (ao contrário de outros autores, Lira Neto não vê nisso um processo de ?desafricanização?). Tais fatos só vão se formatar na década de 1930, quando entrarão em cena o disco, o rádio, a música carnaval, o desfile das escolas. É a Época de Ouro, que o autor prefere estender até 1945 e que certamente será o tema do segundo volume.

Obra como esta exige de quem a realiza gosto pela pesquisa e certo arrojo. Lira Neto tem ambos. Do pesquisador já deram provas seus livros anteriores, em especial a biografia de Getúlio Vargas. Quanto ao arrojo, sem ele não se enfrenta uma história de cujo começo só se sabe por fontes secundárias, livros, jornais, documentos, papéis velhos – sem ao menos um sobrevivente para contar como foi. Como optar por uma versão quando há fontes apontando para outra?

Lira Neto deve ter-se visto algumas vezes diante da questão. Como, por exemplo, no capítulo sobre Hilário Jovino Ferreira. Depois de nos dizer que ?ele, Hilário, não teve dificuldades de se integrar ao Dois de Ouro?, rancho que encontrou no Rio ao vir da Bahia, o autor fala de seu rompimento com os demais integrantes e de sua saída para fundar o Rei de Ouro. Por quê? O que levou Hilário a romper e deixar um rancho em que se adaptara tão bem? Sem responder, o autor conclui: ?Como era comum na Bahia, Hilário esticou as saídas do cortejo para além do ciclo natalino e pôs o grupo na rua em pleno carnaval?. Simples assim.

Só que esta versão contraria a que prevalecia até aqui, apoiada em entrevista do próprio Hilário citada por José Ramos Tinhorão em ?História social da música popular brasileira?, obra constante da extensa bibliografia consultada por Lira Neto. Segundo a versão anterior, Hilário já participava de paganizado rancho de Reis em Salvador. Ao tentar introduzir, em seu primeiro grupo no Rio, elementos sincréticos que não cabiam na celebração religiosa de Reis (entre eles, os precursores do mestre-sala e da porta-bandeira), rompeu com o Dois de Ouro, fundou o Rei de Ouro e, por isso, viu-se obrigado a transferir seu desfile para a folia nada religiosa do carnaval carioca. Com o quê, fez história.

Versão menos simples, porém mais atraente. Pena que, talvez, como nos diz Lira Neto, não seja a verdadeira.