Cotidiano

Crítica: a ironia mais hipster do que hippie de Richard Brautigan

60825772_O escritor americano Richard Brautigan por Loredano SC.jpgRIO ? O americano Richard Brautigan (1935-1984) foi um fenômeno editorial nos anos 1960, quando seus livros venderam milhões de exemplares e sua figura bigoduda se tornou ícone da contracultura. Sua fama, no entanto, foi ligeira. Ao se matar com um tiro na cabeça, era em boa medida um autor esquecido. A produção irregular, o gosto pela autopromoção em chave anedótica e o rótulo de escritor do desbunde hippie ? ou seja, datado ? contribuíram para um prolongado (e imerecido) ostracismo. Resgatado da sombra, seu romance ?Açúcar de Melancia? (1968) é agora publicado pela primeira vez no Brasil, com tradução e posfácio de Joca Reiners Terron. Links Prosa

Desde o parágrafo inicial (?Em Açúcar de Melancia os feitos estavam feitos e foram feitos de novo como minha vida foi feita em açúcar de melancia. Vou contar como foi, pois estou aqui e vocês estão longe?), é um livro de extravagância ostensiva, que se poderia descrever como experimental, com a ressalva de que o termo não deve ser tomado por ?difícil?. Melhor dizer: afrontoso, meio debochado, um tanto fanfarrão.

?Açúcar de Melancia? desdenha tanto das convenções de bom gosto daquilo que o mercado editorial se acostumou a chamar de ?ficção literária? quanto das fórmulas industriais que têm na mira o sucesso maciço. O desdém não resulta em ruptura, porém. Brautigan estabelece com chavões do clero e da plebe um jogo ambíguo de apropriação e sátira, pastiche e paródia.

Se a leitura produz algum desconcerto, não é porque o texto fuja ao registro ordinário da fala. A enunciação em ordem direta, as frases de fôlego curto, o vocabulário restrito estabelecem uma dicção coloquial, com efeito estudado de displicência, que em combinação com o universo disparatado do livro dá em sequências como essa: ?Saí, parei um pouco na ponte e dei uma olhada para o rio mais abaixo. Tinha um metro de largura. E havia duas estátuas saindo da água. Uma delas era da minha mãe. Ela era uma boa mulher. Eu a fiz há cinco anos. A outra estátua era de um grilo. Essa não foi eu que fiz. Alguém a fez há muito tempo, no tempo dos tigres. É uma estátua muito simpática?. Mistura de excentricidade, descuido calculado e desprendimento blasé que moldava também a imagem pública de Brautigan, com seu chapelão e coletes de brechó, e que no fim soa menos hippie do que hipster.

?Açúcar de Melancia? fala de um lugar esdrúxulo, onde se desenrola algo que o leitor custa a decidir se é uma fábula distópica, uma viagem de ácido ou um especial de Monty Python. Em euMORTE, uma agourenta comunidade alternativa, as pontes e casas são feitas de açúcar de melancia, as fábricas produzem óleo de ?melantruta? e por toda parte há uma profusão de estátuas de vegetais: ?Tem uma estátua de alcachofra perto do telheiro e uma cenoura de três metros perto do viveiro de trutas de euMORTE, uma de alface próxima da escola e uma réstia de cebolas perto da entrada de Obras Esquecidas, e há outras estátuas de verduras perto das cabanas onde o pessoal mora e uma couve-nabo perto do estádio?.

Entra de tudo nesse inventário descabido, como se assim o narrador afirmasse de maneira caprichosa a própria liberdade, mostrando que em ?Açúcar de Melancia?, ao menos, seu desvario é o único regimento vigente. Mais do que o enredo, importa no livro o sistema misterioso de correspondências entre esses itens à primeira vista arbitrários (açúcar de melancia, tigres, trutas) que vão sendo mencionados, esquecidos e recuperados num processo de reescrita e citação interna que não chega nunca a esclarecer muito bem do que se está falando, afinal. Tudo permanece em estado provisório, a fatura trabalhosa da obra dá lugar ao jogo sem compromisso. Às vezes, a irreverência resvala na linha que separa a leveza da bobeira, mas ?Açúcar de Melancia? é também a história do tédio crônico que o jogo atenua, sem resolver, e da viagem libertária que vai dar num sonho ruim.

Miguel Conde é jornalista e doutorando em Literatura e Cultura na PUC-Rio