RIO ? Nilcemar Nogueira garante que sua gestão na Secretaria municipal de Cultura pode acabar em samba, mas não apenas em samba. Produtora cultural, doutora em Psicologia Social pela Uerj, ex-presidente do Museu da Imagem e do Som, criadora do Museu do Samba, neta de Dona Zica (e, afetivamente, também de Cartola), Nilcemar assumiu em janeiro a pasta, já enfrentando dívidas da gestão passada e dúvidas sobre a diversidade de seus projetos para a secretaria. Em entrevista ao GLOBO, ela procurou dissipar as dúvidas, prometeu descentralizar a aplicação dos recursos, mas afirmou não ter como garantir quando os R$ 25 milhões do edital de Fomento de 2016 serão pagos.
Qual foi a situação financeira que a senhora encontrou na Secretaria de Cultura?
Temos R$ 195 milhões para a pasta este ano. Nas primeiras conversas com a equipe, vi que as demandas são maiores do que o que temos e terei que me adequar. Quando você chega na prefeitura, a coisa começa: são R$ 5 milhões a pagar ali, uma obra inacabada não sei onde, contingenciamento, bloqueio de orçamento. A crise financeira está na nossa casa, e também no serviço público. Todos temos que nos readequar, aprender a dividir mais, não podemos ter concentração de recursos.
O edital que ficou sem pagamento na gestão passada não será pago?
As pessoas tiveram, no ano passado, uma reunião com o Junior Perim (ex-secretário municipal de Cultura), e ele comunicou que não havia previsão orçamentária para o pagamento. Houve uma expectativa de arrecadação que não se cumpriu, então não há dinheiro. Eles receberam esse não da gestão anterior. O que eu tenho são R$ 5 milhões de restos a pagar de contratos já firmados, e para isso temos reserva financeira. Já para os R$ 25 milhões do edital de Fomento, o problema é matemático. Temos R$ 15 milhões aprovados para fomento em 2017, e R$ 25 milhões não pagos, de projetos sem contrato, do ano passado. O que você faria? Eu conversei com o prefeito. O valor será pago, mas não tenho como dizer quando.
Será ainda em 2017?
Não consigo afirmar.
Mas a secretaria vai abrir novos editais sem ter pago o edital anterior?
Eu não posso pagar apenas uma parte. Quem não receber vai aceitar quietinho? E quem está esperando 2017 para tentar o novo edital? Além disso, houve pessoas que impetraram recursos, e isso está em análise. Não vou deixar de colocar um novo edital na rua, porque estaria impedindo novos projetos de serem realizados. Já compartilhei com os produtores o problema. Não tenho como reduzir o percentual pago, porque depois teria problemas para cobrar a entrega. Estamos agindo com responsabilidade.
A senhora já sabe quais serão as linhas dos novos editais lançados?
Estão em planejamento. Este primeiro mês foi corrido, porque resolvi ouvir as pessoas. Tenho coisas na cabeça, mas estou conversando com os funcionários e os produtores. Quero os funcionários como gestores comigo, eles são responsáveis em ter esta cidade respirando cultura.
Há produtores preocupados com a possibilidade de o samba receber uma atenção maior na sua gestão. Quando a senhora foi presidente do Museu da Imagem e do Som (MIS), o local era chamado pejorativamente de Museu da Imagem e do Samba. Essa preocupação se justifica?
É claro que já ouvi de pessoas amigas da chamada elite que tudo vai acabar em samba. Como se não pudesse acabar em samba. Antes de ir trabalhar no MIS como diretora técnica operacional, já ouvia críticas de que a presidente na época, a Marília Barbosa, fazia do MIS o quintal da casa dela. Eu fazia o desejo da presidente. Encontrei uma roda de bambas que deixava a desejar. Trabalhei para dar dignidade à roda, ela passou de um público de 100 para mil pessoas. Mas, quando passei à presidência do MIS, a primeira coisa que fiz foi acabar com a roda. Como gestora, eu era contra.
Não haverá mais espaço para o samba em sua gestão?
Terá tanto espaço quanto as outras artes. A preocupação das pessoas reflete o preconceito. Estamos falando de uma sociedade plural, com diversidade cultural, mas que tem no samba sua referência hereditária. O samba estará na minha gestão, de forma transparente. Não vou fingir que não vou apoiar o samba. Vou também. É a mesma coisa com o musical do Cartola (“Cartola ? Meu mundo é um moinho”, que estreia em 16 de março no Teatro Carlos Gomes, administrado pela prefeitura). Antes de eu chegar aqui, o Perim já havia agendado o Cartola para o Carlos Gomes. Aí um produtor veio me perguntar se eu iria retirá-lo da pauta. Por que retiraria? Não vai custar nada para os cofres da Secretaria de Cultura. Tirar seria hipocrisia.
Sobre alguns projetos específicos que eram apoiados pela prefeitura, a ajuda à Feira das Yabás vai continuar?
Vai, já conversei com o Marquinhos de Oswaldo Cruz (idealizador da feira), e ainda terei um encontro com as Yabás. Mas a feira precisa ser mais do que um lugar de encontros, mais do que um evento. Ela precisa assumir uma postura mais forte. Até porque o cobertor é curto, e daqui a pouco terei que sair dali para apoiar uma feira na Pavuna.
E a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB)? Ela passa por uma crise financeira grande, em parte pelo corte de patrocínio da prefeitura ao longo dos anos.
Tenho consciência do problema. A OSB é extremamente importante para a cidade. Estamos trabalhando na direção de dar uma ressignificação à Cidade das Artes, e eu quero que a OSB tenha uma residência artística lá.
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Como será essa mudança na Cidade das Artes?
O André Marine é o presidente, e a Bel Kutner será a diretora artística. A ideia é fazer do espaço um local de artes integradas. Tanto pode haver teatro, quanto a Rede Carioca de Rodas de Samba. Esses usos serão amplificados. O Cirque du Soleil, por exemplo, quer fazer uma instalação lá. Não haverá preconceito sobre os usos.
E as lonas culturais?
Com certeza as lonas serão mais apoiadas. Nesse cobertor curto, haverá uma preocupação da descentralização de recursos. A gente vai ter que dividir, e eu vou dar mais apoio a quem estava quase cortando os pulsos. Às vezes o trabalho não é melhor porque não se dá às pessoas condições suficientes para fazê-lo. Não importa se estou num teatro da Zona Sul ou numa dessas lonas, a preocupação com a sociedade será a mesma. No ajuste de cortes que precisamos fazer, conversei com todos os nossos gestores para saber qual a realidade dos fatos. Se precisar fechar algum equipamento, vamos fechar.
A senhora encontrou algum equipamento em condições ruins a esse ponto?
Encontrei e vou tentar resolver. Se não conseguir, fechamos. Até porque, se pegar fogo, serei execrada. É preciso ter coragem para não fazer de conta.
Como está o debate sobre o Museu da Escravidão? Houve quem criticasse esse nome. Ele será mantido?
O nome será de baixo para cima. Começa ouvindo a população negra. O nome será escolhido pelo voto da sociedade, pela internet. Eu só dei uma sugestão. Acho que o museu precisa passar pela dor, não apenas pela herança. Devemos abrir em breve concorrência para o projeto de arquitetura.
Como veio o convite para a Secretaria de Cultura? A senhora já conhecia o prefeito?
Não conhecia, e também não sou ligada a partidos, só ao partido alto. Mas, durante a campanha, houve um encontro dos candidatos no Museu de Samba, e fiz um discurso bem contundente. Após a vitória, ele me chamou para uma conversa e disse que gostaria de me convidar. Não é usual convidar um negro para essa pasta. Então, quando ele fez esse convite, eu disse: O senhor conhece minha história? Sou militante, tenho convicções e não mudo. E ele disse que queria que eu fosse do jeito que sou.
Durante a campanha, vieram à tona textos que o Crivella escreveu ou organizou, com críticas a religiões de matriz africana e à homossexualidade e defendendo que a mulher deve ser submissa ao homem. Como militante, isso não pesou na sua decisão de aceitar o convite?
Esses fatos não pesaram. Ele já fez uma colocação pedindo desculpas, que mudou de opinião. O ser humano tem inteligência para se submeter a outras experiências e mudar. O que me importa é o lugar que estou, com liberdade de ação, e com muito respeito.