RIO – Quando o Supremo aceitou a denúncia contra Renan Calheiros e ele oficialmente tornou-se réu em processo criminal, ninguém no país cogitou que o senador espontaneamente renunciasse ao mandato de presidente do Senado. Ninguém imaginou que Renan faria o que qualquer político faz em outras democracias constitucionais quando surgem provas sólidas de seu envolvimento em escândalos de corrupção. Aqui os partidos e colegas de Congresso não têm qualquer interesse em pressionar o acusado a renunciar, pois cada um precisa cuidar de seu próprio inquérito.
O normal seria a renúncia voluntária, mas passou a ser a permanência insolente. Em outros países, 1,6 milhão de pessoas assinam uma petição online ou centenas de milhares vão às ruas para pressionar governos a fazerem algo difícil. No Brasil isso é o necessário para pedir o óbvio.
O erro de Renan acabou corrigido por uma decisão individual do Min. Marco Aurélio. Outro erro grave – com duas causas.
A primeira é a ilusão de muitos brasileiros de que o sistema político pode ser salvo por heróis do Judiciário e do Ministério Público. Esses heróis que não são eleitos, exercem o cargo com vitaliciedade, quase sempre com remuneração acima do limite previsto na Constituição (ilegal, portanto) e, na pior das hipóteses, são aposentados com salário integral.
Os membros mais sensatos dessas instituições são os primeiros a questionar a pecha de salvadores: Deltan Dallagnol alerta que a Lava Jato sozinha não vai mudar o país. Ainda assim, os eleitores que pediam Joaquim Barbosa na presidência da república agora idolatram Sérgio Moro como a solução perfeita. Quando tanta gente usa a foto de Moro como imagem de perfil no Facebook, o Min. Marco Aurélio se sente legitimado para ser, ele também, o herói da nação. Afastar sozinho o presidente do Congresso passa a ser mais do que normal: um dever cívico. Em sua decisão, o ministro inverte a lógica e afirma que existe insegurança jurídica enquanto o tribunal não faz algo inédito e afasta com decisão individual o presidente do Senado. Máscaras de Marco Aurélio serão vendidas no próximo domingo de protestos.
A segunda causa da decisão individual que afastou Renan é descontrole do Supremo. O próprio tribunal causou a ?urgência? detectada agora ao demorar quase 4 anos para decidir sobre a denúncia de Renan. O tribunal amplia seus poderes com base em sua própria morosidade.
Em paralelo, existe a briga desenfreada e totalmente desregulada por poder entre os ministros. O vale tudo das monocráticas e pedidos de vista. Apesar de 6 colegas já terem votado formando maioria pelo afastamento de réus criminais de cargos da linha sucessória da presidência, o Min. Toffoli vetou unilateralmente a decisão. Pediu vista. Nada novo, apenas repetiu a manobra do Min. Gilmar Mendes que impediu durante mais de um ano o cumprimento da decisão da maioria já formada de ministros pela inconstitucionalidade da doação eleitoral de empresas. A balbúrdia é tal que Marco Aurélio precisou inovar no afastamento unilateral do presidente do Senado apenas para proteger o plenário da ação igualmente individual de Toffoli. Cada ministro fazendo a sua justiça com as próprias mãos.
Quem comemorou a decisão individual de afastamento de Renan deve considerar que não há nada que um ministro do Supremo hoje não possa fazer sozinho, sem absolutamente qualquer consequência. Metade dos presidentes eleitos desde a ditadura militar sofreu impeachment, mas nenhum ministro do Supremo jamais foi removido do cargo na história da democracia brasileira.
Renan contribuiu para naturalizar a ideia de que políticos podem manter-se no poder a qualquer custo. Marco Aurélio contribuiu para naturalizar a ideia de que o Judiciário ? por via de uma decisão individual – é a salvação democrática para a ruína moral do Legislativo e Executivo. O segundo erro é tão perigoso quanto o primeiro.
* Ivar A. M. Hartmann é professor da FGV-Direito Rio