No café de uma livraria de Botafogo, os poetas Catarina Lins e Flávio Morgado falam sobre academias de ginástica, lojas de salgados, uma distribuidora de bebidas. Ou seja, sobre poesia. Ela recebe do colega um elogio pelo verso em que cita ?o entregador de água da JL Cunha de regata vermelha?:
? Achei muito foda você imortalizar os caras ? diz Flávio, que prossegue. ? A gente vive isso. Aí vai excluir na hora de escrever porque parece que a linguagem é sagrada? Não dá.
Catarina vai na mesma linha:
? Antes eu achava que só certas coias pudessem entrar no poema. Agora, tudo que eu vejo na rua vira verso.
Os dois fazem parte da novíssima safra de poetas do Rio, que já começa a se destacar. Marca presença, por exemplo, em ?É agora como nunca ? Antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira?, organizada pela compositora Adriana Calcanhotto e recém-lançada pela Companhia das Letras.
Entre os 41 eleitos do livro ? elogiado mas também acusado de falta de representatividade ? há cinco cariocas com menos de 30 anos: Alice Sant?Anna, Luca Argel e Victor Heringer (todos com 28), além dos já citados Flávio (27) e Catarina (nascida em Floripa há 26 anos e ?carioca? desde os 19). A convite da Revista O GLOBO, eles mandaram exemplos de sua produção mais recente, que você pode ler nos links abaixo:
“Copacabana”, de Alice Sant’Ana
“O poema da geleira”, de Catarina Lins
o êxtase de santa teresa, de Flávio Morgado
“O número zero”, de Luca Argel
“Noturno para astronaustas”, de Victor Heringer
Calcanhotto vê um ponto em comum na obra do quinteto:
? Um desassombro, uma ligação natural à poesia. Escrevem para encarar o real e não para escapar dele ? diz a cantora, ecoando o papo do café em Botafogo.
Autora de três coleções de poemas (incluindo o premiado ?Rabo de baleia?) e atualmente editora da Companhia (o projeto da antologia é anterior à sua entrada), Alice Sant?Anna vê como marcas frequentes de seus contemporâneos o verso livre, o tom coloquial, o humor e a melancolia. A opinião geral, no entanto, é de que não há uma uma síntese possível desta geração.
? Essas formulações são feitas depois, pela crítica, para dar algum sentindo ao passado, porque o hoje é sempre múltiplo. Talvez seja este o traço comum da poesia contemporânea: aceitamos a multiplicidade do presente, estamos abertos para as diversas maneiras possíveis de escrever ? diz Victor Heringer, que antes de escrever romances lançou os versos de ?automatógrafo? (2011).
Autor do premiado ?Esqueci de fixar o grafite? e outros dois livros de poemas, Luca Argel lançou dois discos em Portugal, onde vive. Do outro lado do Atlântico, ele vê um traço ideológico:
? Enxergo uma preocupação comum, anterior à escrita, que depois se manifesta de formas totalmente diversas em cada autor. Parece ser uma profunda angústia política, face às transformações por que a cidade, e que podemos extrapolar para o país, e até para o mundo, têm passado nos últimos anos.
Se o estado atual do Rio divide opiniões, em algo todos concordam: a poesia está em alta na cidade. Como em um soneto clássico, tudo é encadeado.
? No Rio, a cena se articula de forma orgânica porque há uma demanda por espaços e vontade natural do carioca de se encontrar. Os poetas se conhecem, se leem, se influenciam. Você começa na internet, monta um coletivo, vai a um sarau, encontra veteranos, chega em editoras… ? explica Flávio, que chegou a ser dos juvenis do Fluminense antes de ser poeta; já lançou dois livros e toca o terceiro junto com um mestrado em Crítica de Arte.
Outra vantagem para os poetas do Rio é o intenso diálogo entre aspirantes e veteranos. A revista ?Modo de usar? e o evento CEP 20.000, liderados por destaques de gerações anteriores, ainda revelam talentos. Paulo Henriques Britto dá aulas na PUC, Eucanaã Ferraz na UFRJ, Carlito Azevedo na Estação das Letras. Nomes como Armando Freitas Filho e Heloísa Buarque também se mantém atentos aos jovens.
? Acho bonito ver como a geração mais nova e a consagrada dialogam. Essa ponte no Rio é muito especial, porque os poetas que mais admiramos estão próximos. Para quem está começando a escrever, não poderia ter nada melhor ? diz Alice Sant?Anna, que hoje mora em São Paulo.
Catarina aproveitou esse contato:
? Vim de Floripa para estudar Cinema, acabei entrando em Letras, mas pensava em pesquisa, não escrevia. Foi só depois de uma aula com o Paulo Henriques Britto que comei a fazer poemas. E na oficina do Carlito fiz meu primeiro livro ? diz ela, que brinca com o estímulo das ruas cariocas. ? Quando eu vejo estou escrevendo sobre ter visto um crítico na Smartfit. Não sei se outra cidade daria esse material.
Até o leitor de poesia resolveu dar as caras. Não são vendas que se comparem às biografias de youtubers; fora best-sellers póstumos de Paulo Leminsky e Ana Cristina César, estamos falando de 150, 200 cópias, mas que antes sumiam e hoje circulam graças à web.
Jorge Viveiros de Castro, 50 anos, celebra a internet, que mal existia em 1993 quando criou sua editora, a 7Letras:
? Essa comunicação por escrito, mais intensa do que na minha geração, certamente se reflete nos novos poetas.
A 7Letras é um imã de jovens autores ? dos 41 poetas da antologia de Adriana Calcanhotto, 22 já publicaram lá. Jorge admite que a poesia brasileira tem vendagens modestas, mas sólidas.
? Dá para pensar que a poesia é imune à crise. Ou que na crise as pessoas precisam ler mais poemas.