Opinião

Uma vida por umas moedas

Qual o valor da honra? Para alguns, poderia valer uma vida, o que levaria à retórica dos valores sobre o ético e o justo. Ao olhar desatento, parece não ser possível pagar a honra com a vida, especialmente quando Chicos, Zés e Joãos são inocentados de sua infidelidade, por seres “meninos” com uma vida de sonhos e atitudes que valem algumas moedas. Para as mulheres, a balança pode não apontar o mesmo resultado, aliás, em uma sociedade que esperava ter “carros voadores”, discute-se se é cabível a tese de legítima defesa da honra.

Quando estabelecido o Estado, enquanto garantidor contra a anarquia da violência de um ser humano contra o outro, proibiu-se a “justiça pelas próprias mãos”, denominada autotutela. Não valeria mais a lei de Talião de “olho por olho e dente por dente”, cabendo ao Estado efetivar a justiça. Em raras situações, porém, admite-se a legítima defesa, enquanto uma possibilidade de impedir uma lesão a um direito diante de agressão iminente. Por meio dela, busca-se a defesa de si ou de outrem, ou mesmo de bens materiais, através de meios proporcionais de afastar injusta agressão. Para configurar a legítima defesa, portanto, e não ensejar em crime, o indivíduo age de forma proporcional para repelir o mal injusto, não podendo ser excessivo, nem mesmo em sentido de vingança.

Mas e a honra? É bem jurídico protegido pelo Direito, que abrange a dignidade do indivíduo e sua conduta de acordo com a moralidade, mas também a reputação social. A partir da lógica patriarcal que acompanha a criação e aplicação da lei, a imagem do patriarca deve ser preservada, sendo que acolheu-se, por algum tempo, a possibilidade de excluir a punição deste caso agisse para defesa de sua honra, por ser legítima a defesa que lava a honra com sangue. Até porque, muitos desses casos foram julgados pelos seus pares (Tribunal do Júri), envoltos nas mesmas crenças e moralidade conservadora.

Assim, inúmeras mulheres, vítimas de violência doméstica e feminicídio (especialmente quando este crime não estava previsto) tiveram suas vidas devassadas, apedrejadas como Marias Madalenas em razão de suposta promiscuidade, de modo que poderia ser justificável que suas vidas fossem perdidas para compensar a honra de homens de bem.

Aliás, foi apenas em 2010 que a infidelidade e a culpa pelo fim do matrimônio ou da união estável deixaram de importar ao direito, não sendo mais motivo de sanção jurídica. O Ipad chegava ao Brasil quando o adultério deixa de ser discutido nos tribunais, mas o crime de feminicídio ainda levaria meia década para ser previsto. A histórica luta pelo reconhecimento de direitos pelas minorias comumente enfrenta as barreiras morais de uma sociedade conservadora em público, mas nada pudica nas relações mais privadas, especialmente nas íntimas de afeto.

Diante dos dados absurdos sobre violência doméstica, com ascensão exponencial nos últimos anos, a tese de legítima defesa da honra não é apenas jurídica, mas humanitária, sendo que o Supremo Tribunal Federal a julgou inconstitucional agora, em 2023. Não é possível que ser dona de si custe-lhe a vida, especialmente, se se permite o afrouxamento das imposições estatais nas relações privadas, em respeito à autonomia da vontade. Ainda que alguns queiram discordar, a mulher detém autonomia, em igualdade de condições, inclusive sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Não venham se fazer se sonsos, a vida delas não vale poucas moedas…

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas