(A dimensão psicológica da dor)
O sistema complexo que envolve as dimensões de dor (sensitiva-discriminativa, afetiva-motivacional, cognitiva-avaliativa e comportamental) revela que fatores psicológicos são sempre mediadores no processamento da dor, seja ela de origem nociceptiva, neuropática ou psicogênica.
A conceituação de dor definida pela Iasp (International Association for the Study of Pain) em 1979 afirma isso, quando a dor passa a ser considerada subjetiva. Portanto, cada indivíduo aprende a utilizar o termo ou a identificar esse desconforto através de suas experiências traumáticas.
Sendo assim, as dores são sentidas por determinada pessoa, com sua história, criação, etnia, personalidade, contexto e momento. Consequentemente, para tratá-las, é necessário que o profissional procure identificar o significado que cada dor assumiu na vida dessa pessoa.
O trabalho e as pesquisas realizadas pelas equipes multiprofissionais nas Clínicas de Dor têm encontrado que em todos os tipos de dor (aguda, crônica ou recorrente), na resistência à dor, nos diferentes graus de dor (do mais leve ao mais insuportável) e na expressão de dor, as variáveis psicossociais e culturais matizam o processo álgico. Por exemplo, há momentos em que uma dor forte é “esquecida” em função da presença de outro estímulo, seja de desprazer ou de felicidade. Uma mãe frente ao sofrimento de um filho “esquece” suas próprias dores. Um prêmio ou uma homenagem pode “distrair” o contemplado, desviando sua atenção do processo doloroso. Uma criança que, enquanto brincava, não sentia dor, passa a senti-la na presença dos pais, quando acaba a brincadeira.
As expressões de dor variam em função do grupo étnico e cultural. Por exemplo, pesquisas apontam que latinos expressam mais dor do que anglo-saxões. Há, também, estudos que procuram traçar perfis de personalidade mais comuns entre aqueles que sofrem de quadros dolorosos, comentando que existem tipos de personalidade: dramática (relata muita dor), propensa à dor (pessimista, depressiva) e sofredora (procura chamar a atenção ou o afeto, manipula o ambiente).
No campo das linhas teóricas presentes na psicologia, estudiosos do referencial da psicanálise afirmam que quadros dolorosos podem estar presentes sem causa física. Processos inconscientes seriam responsáveis por psicossomatizações, deslocando dores psíquicas para áreas localizadas em determinadas partes do corpo. Essas áreas, segundo esses teóricos, podem ter o significado de metáforas. Por exemplo, uma dor ginecológica pode ser uma metáfora de dores psíquicas afetivo-sexuais. Afirmam também que dores podem ser mantidas como alívio de culpas reais ou imaginárias. A dor funcionaria como forma de castigo, imposto, muitas vezes, por crenças religiosas. Quadros álgicos podem surgir, ainda, como substituição de sofrimento em outras áreas, como em substituição ao luto ou à fuga de problemas nas relações pessoais ou no trabalho.
Não se pode deixar de citar que existem investigações que convergem para a correlação entre transtornos de humor e da dor. Assim, a ansiedade tem sido observada em casos de dor aguda e a depressão em situações de dor crônica. Uma alta correlação tem sido verificada entre as variáveis medo e dor: quanto maior o medo, maior a dor. Estudos sobre crenças e valores também têm trazido importantes contribuições para crenças e a compreensão da dor.
A abordagem cognitivo-comportamental tem demonstrado quanto os sistemas de crenças interferem nos processos álgicos e como a forma de enfrentamento (coping) da dor modifica o quadro doloroso, havendo formas de enfrentamento negativas e formas positivas. Os tratamentos fundamentados nessa linha teórica têm, entre outras finalidades, o objetivo da revisão de crenças em relação à dor, assim como o ensino de estratégias e de enfrentamento positivo (Guimarães, 1999; Figueiró, 1999).
A psicologia tem, portanto, trazido elementos essenciais à compreensão da dor. A cada dia, vem sendo desenvolvido e utilizado um maior número de técnicas psicológicas no manejo da mesma. Frente a todos os conhecimentos já adquiridos quanto à multidimensionalidade da dor, os objetivos atuais dos psicólogos que trabalham com esses pacientes são:
*a busca do aprofundamento da compreensão da dor na sua totalidade;
*a busca de recursos psicológicos cada vez mais eficazes de manejo da dor;
*o desenvolvimento de formas psicoterapêuticas breves, individuais, grupais ou de família, focalizando dor;
* o desenvolvimento de programas de trabalho psicoeducacional, utilizando várias técnicas, com o paciente envolvendo, muitas vezes, também seus familiares e os profissionais de saúde que dele cuidam.
Dentro desse contexto, existem muitas modalidades de tratamento psicológico do paciente com dor. Somos representantes aqui de três modalidades diferentes entre si, com distintas bases teóricas e distintas técnicas de ação. Com o relato de nossas experiências, queremos compartilhar com outros profissionais de saúde algumas das muitas possibilidades de efetivar este trabalho. Nosso ponto de convergência é a procura de alívio da dor e do sofrimento. Na forma de atendimento individual ou grupal, nossos esforços se concentram em compreender e ajudar o paciente a compreender a sua dor, a controlá-la e, se possível, a superá-la.
Uma noite deitado em uma rede, sem sentir dor alguma, me veio a ideia de escrever um poema para minhas mãos e saiu isto;
MÃOS
Hoje olhei minhas mãos
As rugas do tempo nelas encravadas
São marcas que contam, em cada ponto
O tanto de que na vida
Por mais que não queiram tem desconto.
Foram elas que escreveram durante minha vida
Nos dois dedos firmes polegar e indicativo
Amarraram pontos de um corte traumático
E receberam uma criança de um parto que estava moribundo
Que as avessas da saúde em desequilíbrio
Tentava arrancar alguém deste mundo:
Que no termômetro segurou mil vezes
Para medir temperaturas reais e dos desenganos
E cerrou olhos cadavéricos
E deu alivio à dor e à frieza dos humanos.
Foi ela que serrou o osso duro na amputação
Foi ela que segurou firme o descontrolado
E amaciou no afago o descontente e infeliz
E também o rosto de quem estava ao meu lado.
Foi ela que deu a mão a outras mãos
No caminhar da criança nas enfermarias da vida
Que segurou a vela de muitas despedidas
E acenou desconcertado o adeus de sua partida.
Lélio Márcio de Oliveira é médico neurologista