Cotidiano

Uma rivalidade benigna

201606021811300268.jpg Numa época em que os políticos são vistos como uma praga, um senador sai no braço com um cidadão que o chamou de pilantra e um ex-ministro é chamado de ladrão no aeroporto de Lisboa, faz bem à alma lembrar Ulysses Guimarães. Como presidente da Assembleia Constituinte, ele foi um dos construtores de arcabouço jurídico que deu autonomia ao Ministério Público, transformando uma instituição modorrenta num pilar da República.

Lembrando-se Ulysses aprende-se que os políticos podem ser frugais, pertinazes, elegantes e conciliadores. Ele foi uma aula. Nos anos 40, quando o Santos Futebol Clube não tinha Pelé, o jovem advogado presidiu sua subsede paulistana. Em 1970, quando o MDB foi dizimado numa eleição temperada pelo medo de prisões e pela censura, a presidência do partido caiu-lhe no colo. Sua bancada de sete senadores cabia num elevador. Quatro anos depois, o partido de Ulysses elegeu dezesseis senadores e encurralou a ditadura.

Num tempo de divisões e xingamentos pode-se ter a impressão de que o crescimento do MDB de outrora e a agonia da ditadura foram uma inexorabilidade imposta pelo ronco das ruas. Falso. Ulysses soube manter unido um partido onde conviviam facções antagônicas. Uma flertava com a esquerda e a outra com a banda moderada do regime. Uma morreria sem a outra e Ulysses administrava essa convivência.

Numa época em que o tucanato é capaz de se estapear mesmo disputando uma cadeira elétrica, o melhor momento de Ulysses é também sua maior lição. Ele dividia com Tancredo Neves a liderança da oposição. Ambos eram conservadores e moderados. Em 1984, o Brasil começou a ir para a rua, unido, pedindo eleições diretas para presidente da República, e Ulysses foi o grande engenheiro dessa campanha. Ela precisava de dois terços dos votos de deputados e senadores e não os tinha. Tancredo acreditava que a emenda das diretas seria rejeitada, mas o MDB poderia eleger indiretamente o novo presidente, ele. E assim construiu a primeira conciliação da História do Brasil concebida pela oposição.

O que parecia ser uma divisão incontornável foi transformada por Ulysses e Tancredo num grande momento da vida nacional. Ambos cultivavam uma rivalidade benigna. Existem rivalidades malignas: Lula x FHC, Leonel Brizola x João Goulart, Carlos Lacerda x Jânio Quadros. Como rivais, Tancredo e Ulysses tramaram o colapso da ditadura. Tinham tudo para brigar, mas nunca se ofenderam publicamente. Se a eleição fosse direta, Tancredo apoiaria Ulysses. Foi indireta, Ulysses apoiou Tancredo.

Morto Tancredo, Ulysses tornou-se o condestável do governo de outro vice (José Sarney). Presidia a Câmara, a Constituinte e o PMDB, que chegou a ter 22 dos 23 governadores, 266 deputados e 44 senadores. Era o político mais poderoso do país durante um governo arruinado. Em 1989, doutor Ulysses foi candidato à Presidência da República. Tinha 22 minutos de televisão no programa eleitoral gratuito. Terminou em sétimo lugar, com pouco mais de 4% dos votos. Foi derrotado por Fernando Collor, mas nunca chamou de ilegítima a vitória do adversário.