Foz do Iguaçu – O caso estarrecedor que caracterizou tráfico internacional de três crianças paraguaias registrado em Cascavel revela apenas a ponta de um iceberg hediondo e vergonhoso e recorrente.
O Jornal O Paraná apurou com exclusividade que há dezenas de menores de idade trazidos de países vizinhos em situação similar por todo o Paraná. Mas o dado mais preocupante vem do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Paraná, ligado à Secretaria de Estado da Justiça e o Ministério da Justiça. Em entrevista exclusiva a O Paraná, a coordenadora do Núcleo, Sandra Xavier, revela que neste exato momento há protocolos de 47 crianças do Estado que foram traficadas. A maioria delas tem de 9 a 16 anos de idade e foram levadas com o mesmo objetivo: a exploração sexual.
Embora 47 menores tenham sido levados de suas famílias, outro dado preocupa: hoje, há apenas o registro de duas crianças desaparecidas no Estado.
Ao que tudo indica, avalia Sandra Xavier, as famílias podem estar diretamente envolvidas, sendo coniventes e entregando seus filhos a quadrilhas de traficantes, às vezes sob falsas promessas de bons empregos e ganho fácil. “Quando se fala em tráfico de pessoas, logo se pensa no tráfico internacional. Mas agora a característica do tráfico mudou. Hoje a maior parte dessas pessoas é traficada dentro do Brasil mesmo, vão de um estado para outro e, na maioria das vezes, para a exploração sexual. São crianças geralmente abusadas em casa e aliciadas na porta de escolas ou em shoppings da seguinte forma: se em casa você é abusada, ao menos vai receber dinheiro em troca”, lamenta.
Rede bem articulada
Quanto ao caso recente de Cascavel, descoberto a partir do relato de um menino de um ano que teria sido encontrado abandonado, há fortes indícios do envolvimento de uma rede muito bem articulada e com raízes em inúmeras cidades da região.
Somente no oeste do Paraná, esses grupos têm atuação em Cascavel, Foz do Iguaçu, Medianeira e Santa Helena, por exemplo. “Pelas características de como tudo aconteceu, é impossível esta pessoa [Maria Paraguaia] ter agido sozinha. O perfil dela é peculiar para o tráfico. Tem convívio e envolvimento social, é conhecida de muitas pessoas importantes, ela estava acima de qualquer suspeita”, observa Sandra Xavier.
Núcleo já tinha recebido denúncias
Antes de as autoridades de Cascavel chegarem a Maria Paraguaia, o Núcleo de Enfrentamento – com sede em Curitiba – recebeu uma denúncia anônima, via 181, indicando seu envolvimento no aparecimento repentino do menino de pouco mais de um ano. “O caso nem tinha ganhado repercussão na mídia e nós havíamos recebido a denúncia (…) mas esse não é um caso isolado em Cascavel, temos diversos registros de suspeitas de tráfico de pessoas da cidade formalizadas no Núcleo e que estão sendo investigadas”, acrescenta Sandra Xavier.
Difícil caracterização do crime “livra” traficantes
A dificuldade para a caracterização do crime de tráfico de pessoas também tem uma explicação. Segundo Sandra Xavier, a falta de cultura em se combater esse tipo de ação ilícita muitas vezes acaba descaracterizando-o no momento da investigação ou da elucidação. “Há muitos casos em que cai para o aliciamento para exploração sexual [rufianismo] ou para o trabalho análogo à escravidão. São crimes graves, mas não hediondos como o caso do tráfico de pessoas, que fica mais difícil de ser caracterizado”, explica.
Quanto ao perfil das vítimas, tirando os bebês que comumente são levados para fora do País, hoje as demais estão sendo aliciadas, ou roubadas e até vendidas, para a exploração sexual e o trabalho análogo à escravidão.
Paraná: 107 denúncias e mais de 200 adultos traficados
O Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Paraná contabiliza 107 denúncias de tráfico de pessoas adultas, isso sem contar as 47 crianças.
Somente uma das denúncias dá conta de 22 pessoas que foram levadas do convívio familiar com promessas falsas. Juntos, esses protocolos somam quase 200 pessoas desaparecidas.
Ocorre que, por medo, desconhecimento, ou conivência, as famílias não formalizam as denúncias.
Questionada sobre como o Núcleo tem conhecimento de todos esses casos, Sandra Xavier revela: são denúncias formais, denúncias anônimas e até o auxílio de organizações não governamentais que trabalham no rastreamento e no enfrentamento a esse tipo de crime.
Foz vai ganhar núcleo avançado
Foz do Iguaçu – Um estudo recente da Organização Internacional da Migração revela dados preocupantes para o Brasil, inclusive o Paraná. O Estado aparece na rota viciada e bem articulada da criminalidade para esse tipo de ação de quadrilhas altamente especializadas e próximas de pessoas muito influentes que as deixam numa espécie de invisibilidade às autoridades, sobretudo nas regiões mais próximas à fronteira.
O Brasil agora é signatário da Carta de Palermo e, com isso, se dispôs a intensificar as ações de combate ao tráfico de pessoas, tanto de envio de pessoas quanto no recebimento.
Esse é um dos motivos dos quais Foz do Iguaçu vai receber um Núcleo Avançado de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, vinculado ao núcleo em Curitiba e ao Ministério da Justiça, em Brasília. “Diante de tantos casos observados na região oeste, optou-se pela criação desse núcleo em Foz do Iguaçu para dar acompanhamento às vítimas por dois anos. Ainda está em fase embrionária, mas entendemos que esse espaço deve acompanhar as vítimas por esse período para que elas não voltem à condição em que estavam e sejam traficadas novamente”, ressalta Sandra Xavier.
Três crianças repatriadas
Sandra Xavier conta o caso de três irmãs que em agosto passado foram repatriadas no Paraná. Devido à idade delas – de 3 a 17 anos -, o caso segue em segredo e não ganhou repercussão na mídia. Elas foram trazidas de volta após terem sidos rastreados os passos da quadrilha que as levou para um país vizinho.
As três estavam sob a tutela ilegal de uma família. A mais velha voltou grávida e está prestes a dar à luz. “É muito triste ver e viver isso, mas penso que essa é a minha forma de contribuir com a sociedade e evitar que crimes assim continuem acontecendo. As pessoas precisam denunciar”, desabafa a coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Paraná.
Maria Paraguaia
A Justiça Federal de Cascavel manteve ontem a prisão de Maria Conceição Queiroz, conhecida como Maria Paraguaia. A mulher é acusada de tráfico internacional de ao menos três menores de idade. O crime foi descoberto após a divulgação de um menino de um ano que teria sido encontrado por ela abandonado.
Na casa de Maria, no Bairro Cascavel Velho, a polícia encontrou outras mais uma menina de dez anos e outra de 17. Os três, conforme a Polícia Federal, têm nacionalidade paraguaia e foram trazidas por Maria.
Ontem, o delegado federal Mário Cesar Leal Júnior foi até Foz do Iguaçu para, em conjunto com a Polícia do Paraguai, identificar os pais dessas crianças e descobrir como elas foram trazidas ao Brasil.