?Tenho 63 anos, moro em Vitória, mas vivi no Rio por 40, onde fiz residência , pós-graduação e mestrado em psiquiatria. Também sou psicanalista e estudo questões relacionadas ao uso indiscriminado de medicamentos psiquiátricos, especialmente em crianças.?
Conte algo que não sei.
Ao pesquisar a história de medicamentos psicotrópicos nos últimos 60 anos, concluí que a indústria psiquiátrica, assim como a farmacêutica, é midiática e se serve dos meios para disseminar suas categorias diagnósticas e vendê-las. Transformam um estado de vida comum em patologia. Abatimento, cansaço e tristeza, por exemplo, acabam sendo enquadrados como depressão.
O que mais chamou sua atenção durante a pesquisa?
Me deparei com um manancial de dados norte-americanos que documentam o uso, em altíssimo grau, de medicamentos psicotrópicos em menores de 3 anos. Em crianças com menos de um ano de idade, há cerca de 390 mil prescrições por ano, de acordo com o IMS Health.
De que tipo de medicamentos e com quais indicações?
A tendência mais automática do mercado é indicar medicamentos para transtorno de deficit de atenção e hiperatividade, como a Ritalina. E também de medicação antiansiedade, como Rivotril, Lexotan e Valium, todos para crianças com menos de um ano. Mas qualquer indicação para essa faixa etária é abusiva fora do protocolo.
O que leva médicos a indicar drogas tão pesadas a um volume grande de crianças tão novas?
É uma interpretação equivocada dos fatos, o que resulta numa prescrição igualmente equivocada. (Sigmund) Freud falava que toda criança é uma turbina ligada. Ela depende de uma interação, de um jogo para se acalmar, se esgotar, dormir e, no dia seguinte, ligar a turbina de novo. Numa sociedade que não tolera a infância, médicos veem síndromes em crianças inquietas, e usam a agitação como argumentos para sedá-las.
O senhor identificou uso indiscriminado de outro tipo de medicamento em crianças pequenas?
Me deparei com o uso de Omeprazol e derivados para controle do refluxo gástrico e hiperacidez em crianças com menos de um ano. A regurgitação é um fato fisiológico no primeiro ano de vida. Colocar a criança ereta para arrotar por uns instantes, uma tarde que seja, faz parte.
Os pais, de certa forma, contribuem para a indução do diagnóstico?
Sim. Eles costumam ler um fenômeno clínico comportamental, identificar aquilo com um termo, um código, e remeter ao médico já pré-codificado. Dizem ?doutor, meu filho fica tão inquieto quando come, se alimenta, mama?. Já levam o diagnóstico de bandeja.
Qual a consequência do uso dessas drogas na formação da criança?
O uso continuado do Omeprazol interfere no circuito de absorção de uma série de substâncias, como o cálcio, muito importante nessa idade, o que fragiliza a saúde óssea da criança. E o uso de psicotrópicos, que são depressores do sistema nervoso central, na fase em que o cérebro está em desenvolvimento, pode provocar limitações no desenvolvimento cognitivo.
Esse fenômeno já é visto no Brasil?
Ainda não, mas os Estados Unidos sempre exportam tendências, e essa vai chegar aqui. Resolvi estudar essa questão para criar barreiras, gerar informações e divulgar isso.