Cotidiano

Obra de Arnaldo Antunes vira hit acadêmico

RIO ? ?É incrível a proporção que tem tomado?, responde, laconicamente, o músico, compositor, artista visual, poeta, escritor e ex-VJ Arnaldo Antunes sobre a quantidade de trabalhos acadêmicos que sua obra tem gerado ultimamente.

É um fenômeno recente. Antes, suas canções e seus poemas visuais eram muito usados em provas de seleção de graduação e pós-graduação ? o poema ?Nome? é um hit, e a música ?Rua da Passagem? já foi citada até em enunciado de prova de Física do Enem. Agora, o artista tem visto sua obra se popularizar também em teses e dissertações nas áreas de Linguística, Letras e Literatura ? terreno carpido, há tempos, por Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, nomes imbatíveis em eventos acadêmicos da área. Com seus versos concretistas, textos metalinguísticos e estética pós-moderna, o ex-titã Arnaldo Antunes provoca cada vez mais pensadores ? e pelas mais curiosas razões.

? É mesmo de chamar atenção o número de trabalhos acadêmicos sobre o Arnaldo recentemente. A palavra é o núcleo de toda sua ação criativa. Além disso, Arnaldo é um poeta que tem um diálogo muito vivo com o veio modernista e com suas consequências vanguardistas na história da nossa literatura. Acredito que isso, somado ao caráter multidisciplinar da sua obra, chame atenção dos estudiosos de poesia ? observa o mestrando em Literatura Brasileira da Uerj, Glauber Pimentel, de 34 anos.

AO LADO DE MONTEIRO LOBATO

A ideia para trabalhar com a obra do músico surgiu por acaso: professor de literatura em uma escola pública de Araruama, na Região dos Lagos, Glauber tinha uma hora de intervalo entre uma turma e outra quando resolveu passar o tempo na biblioteca do colégio. Tirou um livro da estante: ?n.d.a.?, conjunto de poemas concretos de Arnaldo Antunes indicado ao Jabuti na categoria Poesia em 2011.

? Naquela leitura pude visualizar todo o meu projeto, levando em conta as questões sobre lírica e metalinguagem que pretendia explorar ? comenta Glauber, que apresentou o artigo ?A palavra dentro e fora de si na poética de Arnaldo Antunes? no último seminário da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), principal encontro de pesquisadores da área na América Latina, que aconteceu no Rio, ano passado.

Só neste evento, havia outros cinco trabalhos sobre a obra de Arnaldo ? num universo em que qualquer expressão literária do mundo pode ser objeto de pesquisa. Para se ter uma ideia, eram quatro os trabalhos sobre Monteiro Lobato, autor mais admirado do país segundo a pesquisa ?Retratos da leitura?.

? A produção artística contemporânea tem estado muito presente na maioria dos estudos de pós-graduação no país. A busca por escritores pouco estudados formalmente é uma das forças motrizes para se tentar estabelecer novas práticas conceituais ? observa Lívia Bertges, de 30 anos, doutoranda da Capes na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que publicou este ano o artigo ?A poética de Arnaldo Antunes: da palavra ao traço em desconstrução?. ? O estudo de um autor não canônico, como no caso dele, amplia discussões a respeito das estruturas do texto literário, debates que ainda estão germinando na academia.

TÍTULOS HERMÉTICOS

Os trabalhos se aproximam de formas distintas da obra arnaldiana ? no caso de Lívia, o foco foi a visualidade das suas poesias ? mas a escolha sempre tem uma motivação em comum:

? Foi uma escolha afetiva. Durante o mestrado, pesquisei a visualidade do poeta mineiro Knorr, e meu interesse era entender as fronteiras entre a literatura e as outras artes. Assim, pesquisei as vanguardas europeias e as poesias experimentais brasileiras na década de 1950. Quando fui montar o projeto do doutorado, me perguntei qual tinha sido o livro que mais tinha me marcado naquele ano. Era o ?Agora aqui ninguém precisa de si? (2015), do Arnaldo Antunes.

Depois, Lívia fez uma longa pesquisa sobre as outras 17 obras do escritor e debruçou-se sobre sua fortuna crítica.

? É um desafio trabalhar com textos que usam variados suportes para produção, como a folha do livro, a tela do computador, a parede do museu, ou a própria performance durante os shows. O suporte define a arte e afeta a linguagem ali exposta ? detalha Lívia.

Professora de Literatura da Universidade Estadual do Pará (Uepa) e doutoranda em Filologia pela USP, Sandra Mina Takakura acaba de publicar dois artigos sobre o artista: ?A narrativa poética de Arnaldo Antunes em ?Bicho de sete cabeças?? e ?Bivocalidade científico-poética em uma seleção de poemas de Arnaldo Antunes?. Os títulos herméticos, no entanto, guardam aspectos peculiares da obra de Arnaldo:

? No primeiro, explorei os poemas-canções do filme ?Bicho de sete cabeças?, em que eles funcionam como um tipo de narrativa à parte, figurativa e não diegética, ou seja, como um narrador que se situa fora do enredo, apesar de conhecer os conflitos internos do protagonista, vivido por Rodrigo Santoro. No outro, vi os poemas do CD ?Dois ou mais corpos? como enunciados que têm uma oralidade própria além do aspecto visual ? explica Sandra.

Assim como Glauber e Lívia, Sandra também teve razões afetivas:

? Os Titãs fizeram parte da minha adolescência, há um componente nostálgico muito forte. É bom ver um artista amadurecer. Com ele, amadureci também.

Apesar de afirmar que recebe cópias dos trabalhos acadêmicos com alegria, o artista diz ?não se sentir confortável? para avaliá-los.