Cotidiano

O veadinho da escola

O garoto saiu da escola, sob chuva de protestos da direção que ainda o queria como aluno

Vivian Weiand

Era um doce o menino. Educado e gentil, Francisco era daquelas crianças cujas feições lembravam pai e mãe ao mesmo tempo. Os olhos, ligeiramente amendoados, vieram de seu pai; longos cílios que naturalmente se voltavam para cima foram uma generosa herança da beleza exótica de sua mãe. Com 4 anos de idade, Francisco dizia “muito obrigado” e “por favor” para quase tudo. Até o “muito prazer”, depois de ser apresentado a uma pessoa estranha, fazia parte do vocabulário do garotinho que encantava pela sensibilidade e meiguice. Aos cinco anos, Francisco ajudava a mãe, então grávida do segundo filho, a carregar as compras do supermercado. “Mamãe não pode carregar peso”, dizia um filho dedicado e atencioso. A delicadeza do menino surpreendia, mas nem sempre o ajudava. Aos seis anos, já na escola, não se deu muito bem no futebol, aula de educação física onde colegas se empurravam e se xingavam, comportamento que a quilômetros se encaixava no padrão de Francisco. Mas não teve jeito, era obrigatório e ele teve de jogar. Com pouco mais de sete anos, porém, Francisco foi impedido de jogar bola. Um coleguinha mais velho anunciou que no time dele “veadinho” não jogava.

Francisco saiu chorando, cabisbaixo, com uma professora o consolando logo atrás. Mas o mal já estava feito. Por ter sido comparado a um animal, Francisco estava triste, e seus pais mais ainda pois quem o chamou de veadinho não sabia o que dizia. Isso era coisa de gente adulta, de comentários em casa, maldade comprovada no episódio que dilacerou o coração de Francisco.

Cedo ou tarde, o menino teria de enfrentar a vida. Há tempos os falatórios existiam e já tinham ultrapassado as fronteiras da escola. Havia pais questionando a instituição de ensino por ter permitido aquela delicadeza toda dividindo a aula com os outros meninos, muitos dos quais advertidos por seus pais a ficarem longe de Francisco e não brincarem mais com ele. Até de festas de aniversário o menino vinha sendo excluído. Ao ser rechaçado por seu colega, os pais de Francisco deram um basta à polêmica.

O garoto saiu da escola, sob chuva de protestos da direção que ainda o queria como aluno. “Não dava”, disse sua mãe. O menino já tinha fama e de lá se desligou, por puro preconceito e ignorância dos pais em compreender o ser humano. A única meta era preservar seus filhos machos, e isso queria dizer ficar longe de colegas educados. Francisco saiu sem se quer terminar o primeiro ano. Anos depois, foi seu pai transferido, e a família mudou de cidade. Nunca mais soube daquele menino com olhos puxados e seu jeito de anjo que encantava a quase todos.

Quando não é ferramenta para mostrar músculos sarados em academia e exibir viagens para o exterior, até que o Facebook serve para alguma coisa, como esse fantástico papel de busca e reencontro que ele promove. Um dia achei a mãe do Francisco que, vejam só, tinha mais dois irmãos, o menor com 16 anos. Do menino dos longos cílios quis saber novidades, mas não demorou muito e logo eu estava na página dele. A criança meiga e educada cursou medicina, o que não me causou nenhuma surpresa, esta por conta da especialidade escolhida por ele, hoje médico ginecologista, e pelo jeito o mais renomado na cidade em que fixou moradia dez anos antes. Um passeio por sua página é entender que tem gente que veio para esse mundo para compreender. E ajudar, e ajudar muito, tantos eram os posts de mulheres, homens, avós, padrinhos, tios, enfermeiras, colegas, médicos e crianças agradecendo o carinho, a dedicação e a competência daquele anjo que Deus enviou lá de cima para estar presente em um momento tão delicado de suas vidas.

E esse anjo era o Francisco adulto.

De todas as postagens, porém, nenhuma me atingiu mais do que aquela enviada por sua esposa – sim, esposa – no dia em que a filha deles nasceu, menina trazida ao mundo pelas mãos de seu pai. Meses depois, fotos de uma criança linda, de olhos amendoados e longos cílios voltados para cima trazia de volta a beleza de sua avó e de seu pai, feições delicadas melhor aceitas em um corpo de mulher, assim como a meiguice, a educação e a sensibilidade que tanto precisamos no caráter de qualquer profissional e que, infelizmente, a sociedade não aceita como constituintes normais da personalidade de um homem.

 

A autora é jornalista

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