Cotidiano

O dilema mora ao lado: peça discute a dura arte da convivência

RIO – O que fazer quando a vizinha de cima insiste em andar pelo apartamento com passos firmes em barulhentos saltos altos? Ou quando o cachorro do apartamento em frente passa a noite inteira ganindo? E se o quintal amanhece cheio de lixo alheio? Ou ainda… vale a pena economizar água quando a conta é compartilhada e sabe-se que a família do 803 não mexe uma palha para consertar seu vazamento? Os livros de reclamações de condomínios guardam um valioso registro das dificuldades contemporâneas do simples ato de conviver. Foi com base nesse rico material que a Cia Omondé construiu o seu quinto espetáculo, ?Os inadequados?, que estreia neste sábado no Teatro Ipanema.

? O livro de reclamações é parecido com o que se faz no Facebook: você xinga, escreve palavrões? Mas, se encontra a pessoa ao vivo, é educado e cumprimenta. Vimos muitas cartas que têm um tom irônico, como um morador que diz que o outro ?cria baratas como se fossem animais de estimação? ? conta Inez Viana, diretora do espetáculo e fundadora da companhia.

CASOS DOS PRÓPRIOS ATORES

O pontapé de ?Os inadequados? foi dado logo após Inez terminar de escrever uma adaptação teatral para o romance ?A mentira?, de Nelson Rodrigues. No dia em que botou o ponto final, ela percebeu que o momento político do país pedia algo diferente, e convocou o grupo para discutir ideias. Veio aí a sugestão de se trabalhar com cartas de condomínio. A proposta foi recebida com certa estranheza, mas, depois que o grupo começou a olhar livros recheados de reclamações, a identificação foi imediata.

? Quando começamos a ler as cartas, eu disse ?gente, para tudo, é isso!?. Falando primeiro de nós mesmos, da nossa intolerância e das nossas reclamações, automaticamente temos um reflexo do nosso país ? lembra ela.

Criada em 2009, a Omondé sempre se pautou pela encenação de textos brasileiros inéditos. O primeiro espetáculo (do qual inclusive deriva o nome da companhia), ?As conchambranças de Quaderna?, era uma comédia de Ariano Suassuna que havia sido montada apenas por grupos amadores de Pernambuco. Seguiram-se duas peças de Jô Bilac e a adaptação do romance ?Nem mesmo todo o oceano?, de Alcione Araújo. Agora, com ?Os inadequados?, o grupo parte para sua primeira experiência autoral: todos assinam juntos cenários, figurinos, trilha sonora e dramaturgia.

O texto final surgiu de improvisações a partir de depoimentos reunidos em livros do condomínio dos próprios integrantes e pesquisados na internet e na imprensa. Os atores também criaram histórias. E, mesmo durante os ensaios, o grupo continuava experimentando, incluindo referências de acontecimentos recentes no espetáculo. A dramaturgia ainda inclui poemas de Tiago de Mello, do renascentista espanhol Calderón de la Barca e da polonesa Wislawa Szymborska, vencedora do Nobel de Literatura de 1996.

Para Inez, a opção por construir o espetáculo de forma coletiva não veio à toa. O processo é resultado de uma conjunção entre o tema e o clima de intolerância e polarização que toma conta do país. Desta vez, ela diz, a peça foi uma forma de estarem juntos e ?se abraçarem?.

? Isso dá uma responsabilidade muito grande para os atores, que realmente tiveram que tomar o espetáculo para si e atuar como criadores ? explica a diretora.

CAMPANHA DE FINANCIAMENTO

O coletivismo se reflete até na maneira como a peça está sendo produzida. Enquanto as experiências anteriores sempre incluíram alguma forma de apoio ou patrocínio, ?Os inadequados? recorreu ao financiamento coletivo. A campanha, feita pelo site ?Benfeitoria?, fica no ar até o fim da temporada (27 de junho), quando Inez e a produtora Claudia Marques esperam ter recuperado o dinheiro investido.

? A companhia é um divisor de águas na minha carreira, assim como na dos atores. A cada trabalho, a gente tem mais intimidade ? conta Inez.