Cotidiano

Nicolas Cabrera, sociólogo: 'A violência está quase na origem do futebol'

201609201630287690.jpg“Pesquiso torcidas organizadas e sua relação com a violência. Como em toda
pesquisa, minha motivação tem algo de biográfico. Sou torcedor do Belgrano e
frequento o estádio desde menino. Nunca aceitei as explicações sobre a violência
ser culpa das organizadas. O que eu via no estádio não era o que eu ouvia fora
deles.”

Conte algo que não sei.

O primeiro homicídio vinculado a
futebol na Argentina aconteceu em 1922: um torcedor matou outro com um tiro, na
arquibancada, por uma discussão. Só depois, em 1930, o futebol se
profissionalizou na Argentina. E somente nas décadas de 1950 e 1960 apareceram
as torcidas organizadas. Apesar disso, quando alguém fala sobre violência no
futebol, imediatamente se pensa nas organizadas. É um erro de interpretação. A
violência está quase na origem do futebol.

Ainda assim, as torcidas organizadas são regularmente
responsabilizadas por casos de violência.

É hora de reconhecermos que esses
grupos têm uma identidade e uma história muito forte. É claro que não vou ser
romântico em defender que as organizadas são todas compostas por gente de bem.
Há criminosos nelas, mas também há professores, advogados, jornalistas,
sociólogos. As torcidas são um mundo muito heterogêneo. Mas a imagem mais
espetacularizada pela mídia é a de um criminoso de fuzil. As torcidas têm
problemas, claro. Em geral, elas têm uma cultura machista, homofóbica e racista.
Elas também têm relações verticais, em que quem está acima tem um controle
absoluto sobre quem está abaixo. Mas não são um bando de gente violenta, como se
diz.

Como se explica essa violência, então?

Isso que se deve estudar antes de
simplesmente criminalizar as torcidas. Volta e meia alguém diz que a violência
no futebol é um reflexo da sociedade. Dizem que, se uma sociedade é violenta,
seu futebol será violento. Mas que países têm os piores índices de homicídio na
América Latina? Talvez México, talvez Colômbia, talvez Brasil. E qual o país com
mais casos de mortes no futebol? É a Argentina. A Argentina tem índices muito
mais baixos de violência social, mas já houve 315 mortes por causa de futebol.
México e Colômbia têm muita violência social, mas pouca violência no futebol. E
o Brasil tem violência nos dois lados. É interessante discutir essa ideia de que
o futebol é um reflexo da violência social, mas me parece que o futebol tem
lógicas próprias.

Há experiências bem-sucedidas em se conter a
violência?

Há alguns exemplos. Tenta-se
exportar o caso inglês como exitoso, mas o que aconteceu na Inglaterra foi uma
profunda elitização dos estádios. Os clubes como sociedades anônimas
desapareceram e vieram xeques árabes e empresários russos. Na Bélgica, houve um
trabalho muito mais comunitário com as torcidas organizadas, assim como na
Colômbia. No Brasil, o Estatuto do Torcedor é interessante, e há um diálogo
maior com a polícia, o Grupamento Especial de Policiamento em Estádios (Gepe) é
elogiado. Por outro lado, o exemplo negativo é o da Argentina: proibiram o
público visitante nas arquibancadas, e as mortes aumentaram fora do estádio;
perseguiram as torcidas, e elas cresceram.

A falta de identificação dos jogadores com um clube muda a relação
do torcedor?

Reforça a ideia de que a torcida é
o último resguardo da identidade do clube. Historicamente, a identidade do clube
era o time de futebol, mas com o tempo o espetáculo deixou de ser no campo e
passou a ser na arquibancada. O jogador está lá pelo dinheiro, o torcedor está
pelo sentimento. E isso faz com que o torcedor entre em competição com outro
torcedor por esse sentimento. Às vezes, a competição é de cantos, de bandeiras e
de gritos, mas, às vezes, é de violência física.