RIO ? Antes de deixar o Grupo Record, no qual foi encarregada do acervo da editora José Olympio até dezembro de 2014, Maria Amélia Mello começou a reeditar a maior parte da obra de ficção de Antonio Callado. De mudança para a Autêntica, em 2015, sondou a viúva do escritor, Ana Arruda, para saber se conseguiria material para um livro inédito, visando o centenário de Callado. Foi então que Ana Arruda se lembrou da coluna ?Sacadas?, que Callado manteve durante quatro anos para a revista ?IstoÉ?. Links Callado
Essas crônicas, que retratam in loco a fase final da ditadura militar no Brasil, estão agora reunidas, pela primeira vez, em livro, em ?O país que não teve infância: Sacadas de Antonio Callado?, que deve sair em março.
? Os textos refletem um ser político, marcado pela ditadura ? diz Maria Amélia. ? Callado mostra com precisão e perspicácia aqueles últimos anos da ditadura, com todos os personagens daquele tempo. São crônicas curtas, sintéticas, focadas em um mesmo tema.
A publicação original na imprensa foi pesquisada no acervo da Biblioteca Nacional. As 86 crônicas foram fotografadas e depois transcritas para a publicação. Nelas, o escritor e jornalista revisita na mídia os seus temas mais caros, como a reforma agrária, a religião e as questões indígenas. Mas, embora o Callado político apareça em destaque, também há menções a assuntos como cultura, viagens e, claro, grandes figuras de seu tempo? Portinari, Alceu Amoroso Lima, Mario Pedrosa, Nise da Silveira, Oscar Niemeyer, entre outros.
? Você percebe que é um autor que tem compromisso com a realidade brasileira, lúcido, antenado e participativo ? avalia Maria Amélia. ? É um pensador, que traça um perfil da cultura brasileira e que discute o que estava em pauta na ditadura. Escritos no calor do momento, com os dedos no fogo, os textos formam um painel não só daquela época, mas também do próprio projeto intelectual de Callado.
Naqueles minutos finais da ditadura, que pareciam se prolongar sem nunca acabar, o escritor se encontrava bastante ?desesperançado? do Brasil, conta Ana Arruda. Segundo a viúva, o sentimento só foi aumentando até a sua morte, em 1997.
? Ele achava que faltavam líderes, e não via nenhuma saída, nenhuma pessoa em quem confiar ? lembra ela. ? Em algum momento, chegou a visitar o Brizola depois que ele voltou (do exílio), em 1979, para escândalo de alguns amigos mais radicais. Por um momento, chegou a gostar de Lula, mas nunca teve muita segurança no PT. Nas crônicas ele fala do Brasil como um país preguiçoso, em que as coisas não andam.
A abertura ?lenta, gradual e segura? também parecia não andar. A frustração com a indefinição do processo de redemocratização do país aparece na crônica ?Abertura presa no gargalo?. O Brasil vivia tempos esquisitos, esperando por uma promessa que não se concretizava nunca:
? Era um período muito incerto ? diz Ana Arruda. ? O pessoal estava voltando naquela época, mas sem saber se podia voltar mesmo, se havia segurança. A anistia era esquisita: muita gente que voltou foi presa depois.
O título do livro foi pescado de uma crônica de mesmo nome, em que Callado lamenta que o Brasil nunca tenha feito uma reforma agrária. Mas outro assunto de destaque no livro são os povos indígenas, que Callado retratou no seu livro mais famoso, ?Quarup?, e em outras obras, como ?O esqueleto da Lagoa Verde? e ?A expedição Montaigne?.
? Havia um desespero enorme, os índios estavam largados pelo governo. Ele lamentava que Darcy Ribeiro tinha partido para a ?política-política? e já não conseguia cumprir o mesmo papel na defesa dos indígenas ? observa Ana Arruda.
LEIA A CRÔNICA “UMA JURITI QUE NÃO CAIU DO GALHO”, DE 1979
Dia 17 de setembro de 1971, morreu no alto sertão sanfranciscano da Bahia o capitão Carlos Lamarca. Pode-se dizer que até chegar aos jornais a notícia do seu fuzilamento, num encontro com a tropa policial que, hoje sabemos, era dirigida pelo delegado Fleury, a figura de Lamarca só era vagamente conhecida dos brasileiros.
Capitão, instrutor de tiro, Lamarca, como outros oficiais do Exército em nossa história, fez-se de coração revolucionário de extrema esquerda. Foi grande figura do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, que celebrava em sua data emblemática o dia da morte do Che Guevara. Sabia-se que era bravo, talvez até temerário. Correu certa vez a notícia de que Lamarca desafiara Fleury para um duelo a pistola. Como Lamarca era bom de tiro, Fleury só teria aceito o repto à sua moda. Em Grotas de Macaúbas, local onde morreu Lamarca, havia, de um lado, Lamarca e seu companheiro Zezinho, exaustos e famintos. Do outro lado, uma luzidia caravana de policiais e soldados armados até os dentes. Não houve, assim, o combate singular exatamente.
Carta do “Che” estabanado.
Seja como for, o importante a fixar é que a personalidade de Lamarca era essa: um cabeça quente, um mosqueteiro um tanto irresponsável, um “Che” estabanado. Pessoalmente, confesso que até hoje eu teria guardado essa impressão não fosse um documento, um papel, uma carta-diário que ele escreveu no sertão da Bahia, antes de morrer. Trata-se de uma carta íntima, dirigida à mulher que amava apaixonadamente, Iara Iavelberg. A carta foi escrita entre 29 de junho e 16 de agosto.
Ao interceptar a carta, a polícia mandou cópia da mesma aos jornais ? e assim garantiu a sobrevivência, na memória dos brasileiros, de um outro Lamarca, um Lamarca em construção espiritual, tocante em sua busca de uma abrangente virtude que atendesse aos anseios da revolução e às penas do coração, amando com fervor o povo pobre, seu irmão (sapateiro do morro de São Carlos, o pai de Lamarca o educou com os maiores sacrifícios) e Iara, que estava esperando filho dele.
A carta-diário devia ser publicada agora, na íntegra, por si só ou dentro de algum estudo sobre Lamarca. Guardei a página de O Globo de 20 de setembro de 1971, pois toda ela é ocupada pela carta. Mesmo assim, cortes foram assinalados na composição do jornal.
Não vou sequer tentar resumir a carta-diário, com trechos já quase indecifráveis de política da época, embora tudo que está ali escrito reflita a bela preocupação central de Lamarca ? que era a de se aperfeiçoar, como gente, para melhor poder servir aos outros. Fique aqui apenas uma amostra de como o rude capitão, à espera da morte na desolada caatinga, tratava Iara com infinita delicadeza. E como esse amor sacrificava, a despeito da negra fome, até seu apetite, como verão no episódio da juriti que escapou à pontaria do capitão de tiro.
A carta se dirige à “minha neguinha” e começa: “Não pretendo fazer um diário, mas sinto a necessidade diária de te falar (…) Resolvi escrever e eis-me: a mesa uma pedra, a cadeira o chão, a cuca aí contigo e aqui também (…) Sobre o esforço que fiz para chegar, foi realmente impregnado de amor. A força está nos músculos e tendões, porque eles doem muito depois, está na cabeça, que fica desanuviada e feliz. Um dia deixaremos de exaltar esses esforços, eles serão a compensação em si próprios (…) Estejamos onde estivermos, haverá uma realidade a transformar, agora e sempre. Criar as condições para isso é a nossa tarefa de revolucionários. O nosso amor também é uma realidade que veio transformada ? hoje atinge um nível nunca por mim sonhado (…) A tua situação é terrível e a tua necessidade afetiva, muito grande, e, se não houver possibilidade de nos encontrarmos mais, tenho de abrir mão do nosso relacionamento, no que se refere a você ? dar a você a liberdade de se relacionar com outro companheiro. No nível que atingiu meu amor por você, não posso admitir a possibilidade de me relacionar com outra pessoa, nunca mais (…) Hoje, 12 de agosto, aniversário de meu pai. Dia do julgamento do processo VAR em São Paulo. Estou chateado pelo que escrevi ontem e volto atrás: não abro mão do relacionamento ?p. nenhuma?. Não quero isso, nem tenho direito ? é um desrespeito a você. Fui egoísta pra burro e imaturo. Peço que me desculpe de verdade. Não altero a carta para não ser desonesto; acho justo você penetrar no meu pensamento, mesmo que ele seja temporário”.
A juriti que não caiu do galho.
Em regime de quase fome, Lamarca, na caatinga, procurava aceitar de bom grado a ascese da alimentação, como observa dia 4 de julho: “Domingo. Bom dia. O companheiro trouxe comida e café à noite e só volta às nove da noite. Mantenho o espírito crítico para não deixar que a comida seja o centro das preocupações”. Mas quem enxota a fome por pura disciplina? “Adaptando-me à comida. Não me deixam sem café, trazido numa garrafa que no lugar é conhecida como ?quente-frio? (ora veja), uma por dia é dose. Rapadura (nem sempre), arroz, banana verde bem picadinha passada na gordura, ovos às vezes, carne de porco ou de boi, salgada, às vezes também, bolacha com café e laranja (…) Parei para almoçar: macaxeira cozida, beiju, rapadura e laranja.”
E um dia: “Aqui muitos pássaros lindos de variegadas cores ? perto está uma juriti pronta para tomar um tiro no peito, mas não darei o tiro e a vida dela continua em homenagem a ti. Ela voou”.
Quando escreveu a última palavra da sua carta-diário, Carlos Lamarca já teria sabido da morte da destinatária, Iara Iavelberg, dia 6 de agosto, quando foi suicidada em Salvador.