RIO ? Convidada pelo Instituto Internacional do Teatro (ITI) para ser homenageada e homenagear o Dia Internacional do Teatro, celebrado neste 27 de março, a atriz francesa Isabelle Huppert publicou nesta segunda-feira uma carta inédita de sua autoria, em tributo à arte teatral.
Como acontece anualmente, o ITI convida um artista de grande expressão no meio teatral para escrever um testemunho inédito sobre o fazer teatral. Em 2016, a responsabilidade de assinar a mensagem recaiu sobre o grande mestre e encenador russo Anatoli Vassiliev, e em 2017 Huppert foi a escolhida. Em 55 anos de tradição esta foi apenas a oitava vez em que uma mulher foi convidada para assinar a carta-mensagem pelo Dia Mundial do Teatro.
? Nestes 55 anos serei a oitava mulher a quem é pedido para escrever uma mensagem ? diz, na carta, a atriz. ? Sim, o masculino da nossa espécie ainda se impõe.
Aos 64 anos, e com 45 anos de carreira entre o teatro, o cinema e a TV, Huppert conquistou recentemente o Globo de Ouro de melhor atriz por seu trabalho no filme “Elle”, e fez sua última aparição nos palcos no ano passado, em “Phaedra(s)”, dirigida pelo polonês Krzysztof Warlikowski.
? Não faço nenhuma distinção entre representar no teatro e representar no cinema, o que ainda surpreende quando o digo… Mas é verdade, é assim. Nenhuma diferença.
Leia abaixo a íntegra da mensagem assinada por Isabelle Huppert:
Já passaram 55 anos desde a primavera em que se celebrou pela primeira vez o Dia Mundial do Teatro.
Esse dia, ou seja, essas 24 horas começaram no Teatro Nô e Buranku, passaram pela Ópera de Pequim e pelo Kathakali, passaram entre a Grécia e a Escandinávia, foram de Ésquilo a Ibsen, de Sófocles a Stringberg, passaram entre a Inglaterra e a Itália, foram de Sarah Kane a Pirandello. Passaram, entre outros países, pela França, onde nos encontramos, e por Paris que continua a ser a cidade do mundo que recebe o maior número de companhias estrangeiras. Em seguida, as nossas 24 horas levaram-nos da França à Rússia, de Racine e Molière e a Tchékhov depois, atravessando o Atlântico, chegaram a um campus universitário californiano onde as pessoas podem, quem sabe, reinventar o Teatro. Porque o Teatro renasce sempre das cinzas. Ele não passa de uma convenção que temos de constantemente abolir. É por isso que continua vivo. O Teatro tem uma vida irradiante, que desafia o espaço e o tempo, as peças mais contemporâneas são alimentadas pelos séculos passados, os repertórios mais clássicos tornam-se modernos a cada vez que os encenamos.
Um Dia Mundial do Teatro não é, evidentemente, como um dia banal nas nossas vidas cotidianas. Este Dia faz reviver um imenso espaço-tempo, e para evocar esse espaço-tempo vou recorrer a um dramaturgo francês, tão genial como discreto, Jean Tardieu. Cito-o:
? Para o espaço ele pergunta qual é o caminho mais longo de um ponto para outro… Para o tempo sugere medir em décimos de segundo o tempo que demora pronunciar a palavra “eternidade”.
Para o espaço-tempo ele diz ainda:
? Antes de adormecer, fixe em sua mente ou espirito dois pontos no espaço e calculem o tempo que é preciso para, em sonho, ir de um ponto ao outro.
É a expressão ?em sonho? que retenho.
Poderíamos dizer que Jean Tardieu e Bob Wilson se encontraram. Podemos também resumir o nosso Dia Mundial do Teatro evocando Samuel Beckett que pôs a Winnie a dizer, no seu estilo expedito: ?Oh, que lindo dia que poderia ser.?
Ao pensar nesta mensagem, que me fizeram a honra de pedir, lembrei-me de todos esses sonhos, de todas essas cenas.
Então, não chego sozinha a esta sala da UNESCO: todas as personagens que representei me acompanham, todos os papéis que pensamos que nos abandonaram quando a cortina cai, mas eles têm em nós uma vida subterrânea, prestes a ajudar ou a destruir os papéis que lhes sucedem: Fedra, Araminta, Orlando, Hedda Gabbler, Medeia, Merteuil, Blanche Dubois…
Acompanham-me, também, todos os personagens que amei e aplaudi como espectadora. E nesse lugar, pertenço ao mundo inteiro. Sou grega, africana, síria, veneziana, russa, brasileira, persa, romena, japonesa, marselhesa, nova-iorquina, filipina, argentina, norueguesa, coreana, alemã, austríaca, inglesa, isto é, o mundo inteiro.
A verdadeira mundialização é esta.
Em 1964, por ocasião deste Dia Mundial do Teatro, Laurence Olivier anunciou que, depois de mais de um século de combate, seria possível conseguir, por fim, criar na Inglaterra um Teatro Nacional, que ele quis imediatamente que fosse um teatro internacional, pelo menos no seu repertório. Ele sabia bem que Shakespeare pertencia a todo o mundo no mundo.
Adorei saber que a primeira mensagem deste Dia Mundial do Teatro, a de 1962, fora confiada a Jean Cocteau, escolhido por ser, como se sabe, o autor de ?uma volta ao mundo em 80 dias?. Eu fiz a volta ao mundo de uma outra maneira: a fiz em 80 espectáculos ou em 80 filmes ? e digo filmes porque não faço nenhuma distinção entre representar no teatro e representar no cinema, o que surpreende sempre quando o digo, mas é verdade, é assim. Nenhuma diferença.
Falando aqui, não sou eu própria, e não sou uma atriz, sou apenas uma das numerosas pessoas graças às quais o Teatro continua a existir. É um pouco o nosso dever. E a nossa necessidade, ou em outras palavras: nós não fazemos existir o Teatro, é graças ao Teatro que nós existimos.
O Teatro é muito forte, resiste e sobrevive a tudo: às guerras, às censuras, à falta de dinheiro. Basta dizer: ?O cenário é um palco nu de uma época indeterminada? e, então, chamar um ator. Ou uma atriz. Que ele vai fazer? Que ela vai dizer? Irão falar? O público espera. Eles já vão saberá saber. Sim, o público sem o qual não há Teatro ? não nos esqueçamos disso. E sim, uma única pessoa no público é um público ? mas vamos manter nossas esperanças para que não existam muitas cadeiras vazias! As produções de Ionesco estão sempre cheias… E ele representa o valor artístico de forma franca e linda, ao final da peça, quando uma velha senhora diz: ?Sim, sim morramos em plena glória? Morramos para nos tornarmos lendas? Ao menos teremos a nossa rua??
O Dia Mundial do Teatro existe há 55 anos. E nestes 55 anos serei a oitava mulher a quem é pedido para escrever uma mensagem ? enfim, não sei se a palavra ?mensagem? é apropriada. Os meus antecessores ? sim, o masculino da nossa espécie se impõe ? falaram sobre o Teatro da imaginação, da liberdade, e de originalidade a fim de evocar a beleza, o multiculturalismo, e, em suas mensagens, nos provocaram com questões para as quais não temos respostas?
Em 2013, há somente quatro anos, Dario Fo disse: ?A única solução para a crise reside na esperança de uma grande caça às bruxas contra nós, sobretudo contra os jovens que querem aprender a arte do teatro: e então, assim, nascerá uma nova diáspora de atores, que irá sem dúvida retirar benefícios inimagináveis desta situação e encontrar caminhos para a criação de uma nova representação.? ? “benefícios inimagináveis” soa como uma bela fórmula, digna de figurar em um programa politico, não?
Já que estou em Paris, pouco antes de uma eleição presidencial, sugiro àqueles que têm a intenção de nos governar que estejam atentos aos benefícios inimagináveis que traz o Teatro. Mas nada de caça às bruxas!
O Teatro, para mim, é o outro, é o diálogo, é a ausência de ódio. A “amizade ente os povos” embora, hoje eu não tenha bem a certeza do que isso significa ou quer dizer, mas sim, eu acredito na comunidade, na amizade entre os espectadores e os atores, na união entre todas as pessoas que o teatro reúne: os que o escrevem, os que o traduzem, os que o iluminam, vestem, o cenografam, os que o interpretam e o fazem e aqueles que o vão assistir.
O teatro nos protege, nos abriga.
Acredito que ele nos ama ? tanto quanto nós o amamos.
Lembro-me de um velho diretor à antiga que, antes do levantar das cortinas, todas as noites nos bastidores, dizia com sua voz firme: ?Abram espaço ao Teatro!?.
Esta será a palavra final. Obrigada.