BONITO – Cercada pela vegetação do cerrado, rios de águas claras e grutas, no coração do Mato Grosso do Sul, uma história é lembrada ? uma história raras vezes contada fora das linhas do estado. Nada de lendas indígenas ou ?causos? sertanejos. O cenário é o palco do Festival de Inverno de Bonito, e a história é urbana ? a música popular sul-mato-grossense contada por seus personagens. Artistas de diferentes gerações participam do ?Tributo a Geraldo Roca?, show que lembra um dos que iniciaram tudo aquilo e mapeia o que veio depois ? e o que está chegando. O compositor, morto no ano passado, é considerado um dos fundadores desse movimento:
? Geraldo Roca, Paulo Simões e Geraldo Espíndola (irmão de Tetê Espíndola e de Alzira E, nomes atuantes dessa história, que ajudaram a fazer com que essa produção conseguisse alguma entrada fora do Mato Grosso do Sul) são o tripé da música popular urbana do Mato Grosso do Sul, iniciada no início dos anos 1970 ? conta Jerry Espíndola, integrante do trio Hermanos Irmãos e um dos organizadores da homenagem, lembrando a classificação provocativa que Roca usava para falar da música que ele e seus conterrâneos têm feito desde então. ? Ele chamava essa produção de ?música do litoral central?.
A ideia do tributo a Roca ? autor de ?Trem do Pantanal?, canção de resistência à ditadura tida como hino não oficial do Mato Grosso do Sul ? já amadurecia em conversas entre os integrantes do Hermanos Irmãos (formado também por Rodrigo Teixeira e Márcio De Camillo). Até que o Festival de Inverno de Bonito os convidou com a mesma ideia, pedindo a eles que organizassem a homenagem.
? Pensamos em chamar artistas da geração de Roca, outros intermediários, como nós e a Guga Borba, e os mais jovens, como Ju Souc, Jonavo e Marina Dalla ? diz Espíndola. ? A ideia é de um caminho mesmo.
Um caminho fluvial, bem diferente do traçado nos litorais de Rio, Salvador e Recife ? há paralelos com outra música crescida longe demais das capitais, como a ?A estética do frio? de Vitor Ramil.
? A música daqui tem características bastante especiais ? conta Rodrigo Teixeira. ? A proximidade com as fronteiras da Bolívia e do Paraguai são fundamentais, trazendo os ritmos ternários que baseiam a música sul-mato-grossense, a polca paraguaia, o chamamé e a guarânia. É uma região que nunca entrou na moda. E, se por um lado produz Tetê, Almir Sater, Geraldo Roca, por outro produz Luan Santana. Há uma música subterrânea e outra extremamente popular. E ambas têm a ver com algo que me faltou quando fui morar no Rio e procurava músicos para tocar comigo. Encontrei ótimos instrumentistas, mas faltava a ?paraguaíce?. Aqui você tem a América do Sul dentro do Brasil.
?É COMO A NAÇÃO ZUMBI FAZ COM O MARACATU?
Da entrada de elementos como o folk de Bob Dylan nos 1970, passando pela polca-rock do início dos 1990, a música do Mato Grosso do Sul hoje desemboca em novos rios paralelos. Alguns deles puderam ser vistos na programação do Festival de Inverno de Bonito, no fim de julho. É o caso do ?rock tropical? da banda O Santo Chico, com referências que incluem Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Jorge Ben Jor, Hendrix, Criolo e Adoniram Barbosa, além de toda a tradição local ? em sua apresentação, cantaram ?Cunhataiporã?, de Geraldo Espíndola.
? É bem natural incorporar isso, ?Cunhataiporã? é um hino pra gente. É como a Nação Zumbi faz com o maracatu ? explica o vocalista, Begèt De Lucena.
Pelo palco, passou ainda a banda Curimba, um cruzamento azeitado de samba-rock com uma pegada pop-soul à la Jota Quest ? com vários hits locais, impulsionados pelas rádios do Mato Grosso do Sul e confirmados pela reação da plateia. Outra atração, com mergulho mais fundo nas raízes do estado, é a Orquestra Filarmônica Jovem do Pantanal, surgida para o projeto ?Araras da cidade músicas do mato?, que funde a tradicional viola de cocho à formação orquestral.
? É a orquestra se adequando às limitações da viola de cocho, ao mesmo tempo em que se permite entrar numa concepção musical totalmente nova. Respeitamos a viola, sem engoli-la com a sonoridade da orquestra. Mantemos o cheiro da coisa ? explica o maestro Eduardo Martinelli.
Outros nomes se destacam. Marina Peralta se insere com qualidade dentro da cena da chamada nova MPB, que vem se desenvolvendo desde a década passada ? em 2015, ela cantou em Bonito como convidada no show de Curumin. Jonavo desenvolve trabalho solo e é um dos integrantes do projeto paulistano Folk Na Kombi. Novos representantes do litoral central, como destaca Rodrigo Teixeira:
? É o que cantou Milton Nascimento: ?A novidade é que o Brasil não é só litoral/ É muito mais, é muito mais que qualquer Zona Sul?.
*Leonardo Lichote viajou a convite da produção do Festival de Inverno de Bonito