RIO ? ?Empresas paralelas? formadas por agentes privados e capital de empresas públicas ? para administrar empreendimentos como hidrelétricas, termelétricas e transmissoras de energia ?, as chamadas Sociedades de Propósito Específico (SPEs) cresceram no setor elétrico nos últimos anos sem regras de controle e transparência, aponta decisão deste ano do Tribunal de Contas da União (TCU). E agora entraram também no foco da Lava-Jato: inquérito pedido dentro da operação no fim de abril pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e instaurado pelo Supremo Tribunal Federal, inclui nas investigações a suposta influência do deputado afastado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) na participação de Furnas em sociedades desse tipo.
Além disso, algumas das principais falhas de controle apontadas pelo TCU nesse modelo ? a falta de critério transparente tanto para a contratação de bens e serviços por parte de SPEs como para a escolha dos parceiros privados ? são justamente brechas investigadas agora na Lava-Jato, já que empreiteiras denunciadas na operação estão entre as contratadas por SPEs do setor, ou entre as parceiras privadas das estatais nessas sociedades.
Em muitos casos, a SPE contrata fornecedores ligados aos próprios acionistas da sociedade, como apontou o acórdão 600/2016 do TCU, de março. Também não haveria regras claras, segundo o TCU, em relação aos critérios de escolha dos diretores dessas SPEs. São sociedades privadas que, por conta disso, não se submetem aos padrões de prestação de contas e de licitação de órgãos públicos ? apesar de haver ali capital de estatais. ?Não seria demais registrar que o emprego dessa estratégia (SPEs) resta por ocasionar flexibilização (…) de regras de licitação?’, diz o TCU.
Hoje, há 179 SPEs com participação de empresas da Eletrobras. Em Furnas, entre 2011 e 2015, as SPEs da estatal movimentaram R$ 21,9 bi, segundo relatório de gestão da estatal; de 76 SPEs com participação de Furnas até 2015, mais da metade (54) foi criada depois de 2011. Na Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), os investimentos da empresa nesse tipo de sociedade cresceram 801% de 2009 a 2014, de R$ 181 milhões para R$ 1,63 bilhão.
Há participação de empreiteiras da Lava-Jato, por exemplo, em SPEs de Furnas como a usina de Santo Antonio, com participação da Odebrecht; e a de Inambari, no Peru, com participação da OAS. Belo Monte, da Eletronorte, tem contrato com seis investigadas na Lava-Jato, lembra o TCU.
Entre os exemplos de SPEs que contrataram fornecedores ligados aos próprios acionistas, há casos com empreiteiras da Lava-Jato: na Dardanelos, da Chesf, a Odebrecht, contratada para execução das obras, detinha inicialmente 5% das ações da SPE; em Jirau, também da Chesf, a Camargo Corrêa, contratada, detinha antes 9,9% da SPE. Nesse caso, o TCU viu que houve acréscimo do custo inicial de 107%, indo de R$ 9 bilhões para R$ 18,5 bilhões.
De R$ 7 milhões para R$ 80 milhões
Uma das SPEs de Furnas é a Serra do Facão Energia ? um dos principais casos narrados no inquérito pedido por Janot. O inquérito traz trechos da delação do senador cassado Delcídio Amaral (sem partido) que mencionam suposta ligação de Cunha com o doleiro Lúcio Bolonha Funaro. Um dos exemplos dados por Janot foi a suposta atuação de Cunha em transação de Furnas para comprar a parte, na Serra do Facão, da empresa Serra da Carioca II, que seria ligada a Funaro. A compra ocorreu em 2008 e o caso veio à tona em 2011, mas agora entra nas apurações da Lava-Jato.
Segundo o inquérito, Cunha, por meio de mudança na legislação, permitiu que Furnas comprasse ações na Serra do Facão pertencentes à Serra da Carioca II ? parte do Grupo Gallway, que seria vinculado a Funaro. A alteração foi por meio da revogação, com a Medida Provisória 396 de 2007 (relatada por Cunha), de proibição de estatais do setor de terem participação majoritária em sociedades com concessão ou autorização de geração de energia. A MP afirma que estatais do setor podem participar de sociedades ?que se destinem direta ou indiretamente à exploração da produção ou transmissão de energia?; e Cunha argumenta no inquérito que a inclusão da expressão ?direta ou indiretamente? foi para permitir ?que as estatais constituam sociedades de propósitos específicos para participarem de outras sociedades concessionárias?.
Na petição, Janot diz que ?existem fortes indícios (todos também concatenados entre si) demonstrando que Cunha foi o responsável por alterar a legislação energética para beneficiar seus interesses e de Lúcio Bolonha Funaro no setor?. Numa ideia do prejuízo que a transação teria causado a Furnas, Janot narra que, em dezembro de 2007, a estatal renunciou à preferência de compra de ações da outra sócia da Serra do Facão na época, a Oliver Trust, alegando impedimentos legais. Em janeiro de 2008, então, as ações da Oliver Trust foram adquiridas por R$ 7 milhões pela Serra da Carioca II ? montada duas semanas antes. Em julho de 2008, após a alteração na legislação, diz o inquérito, Furnas comprou o lote de ações antes rejeitado, e que agora era da Serra da Carioca II ? mas, em vez de pagar os R$ 7 milhões de antes, pagou R$ 80 milhões.
O relator do inquérito no STF é Dias Toffoli, pois o relator da Lava-Jato na Corte, Teori Zavascki, pediu que ele fosse redistribuído por não ter ligação direta com os desvios na Petrobras, alvo central da operação. Procurado pelo GLOBO, Cunha disse pela assessoria de imprensa que sua defesa fez petição ?para reconsiderar a abertura de inquérito, com a juntada de documentos que comprovam que a descrição da abertura do inquérito não corresponde à verdade. O relator, Dias Toffoli, solicitou a imediata devolução dos autos que haviam sido enviados para diligência, para que ele pudesse decidir?. Segundo a assessoria, ?os fatos da abertura do inquérito, além de falsos, já foram objeto de investigação e concluídos pela sua improcedência, sendo esses documentos juntados na petição?.
Planilha repassada ao GLOBO pelo sindicato do setor no Rio, o Sintergia-RJ, com nomes de diretores de SPEs de Furnas em 2015, inclui ex-dirigentes da estatal mencionados no inquérito no STF, entre eles Carlos Nadalutti Filho, ex-presidente de Furnas, hoje diretor da Enerpeixe e até o início deste ano diretor de outra SPE, a Foz do Chapecó. O inquérito aponta trecho da delação de Delcídio em que ele afirma que Nadalutti ?também era ligado a Cunha?. Ao GLOBO, Nadalutti (PMDB-GO) disse não ter relação com Cunha e que só foi apresentado a ele quando convidado a assumir Furnas. Afirmou que se tornou presidente da estatal em 2008 pelo perfil técnico, apesar de se lembrar de ter ouvido sobre a influência do PMDB do Rio em Furnas na época.
Escritório apura contratações de SPEs
Em resposta à Lava-Jato, a Eletrobras contratou, em junho de 2015, o escritório de advocacia Hogan Lovells para apurar as contratações feitas por SPEs do setor. Procurada pelo GLOBO, a Eletrobras disse ter destacado, em fato relevante publicado em maio deste ano, que as investigações pelo escritório ?ainda não estão substancialmente completas?.
Ao GLOBO, Furnas ressaltou que o aumento na participação em SPEs tem ocorrido pois ?a única maneira de ser competitivo em leilões para expansão do sistema é na forma de SPE com participação minoritária?. E que o acompanhamento das SPEs ?é realizado em consonância com as melhores práticas de governança corporativa?; que há prestações de contas regulares; e que desde 2011 não há novas SPEs que contratem fornecedores ligados a elas.
Sobre o envolvimento de empreiteiras da Lava-Jato em SPEs, Furnas disse que, ?quando da constituição das SPEs, já haviam sido licitados os principais contratos de fornecimentos de bens/serviços pela seleção da proposta de menor preço, para a composição da proposta vencedora do leilão da Aneel?.
A Chesf disse ao GLOBO que ?vem implementando as recomendações e determinações? do TCU no acórdão 600; e que desde 2014 não constituiu ou entrou em nova SPE, ?promovendo ajustes e fortalecendo estrutura organizacional e normativa? segundo indicações do TCU, da Eletrobras ?e pela legislação recente ? conflito de interesse e integridade empresarial (compliance)?.