RIO – Noite de sábado de 2008. Os bombeiros do grupamento de incêndio do Quartel Central recebem uma chamada. O então sargento Davi Lopes não sabia ainda o endereço, tampouco o que o destino lhe guardava. Três sobrados pegavam fogo na Rua Frei Caneca, deixando desalojadas 20 pessoas. Sem água nos hidrantes, as chamas demoraram a ser debeladas, e o trabalho durou até as 13h do dia seguinte.
O serviço dos companheiros de equipe terminava ali. Mas Davi empreendia uma outra jornada pós-trabalho já há algum tempo. Retornava aos locais da véspera em busca de algo que muitos consideravam lixo: vigas e móveis destroçados, porém feitos de madeiras de lei. Os objetos reunidos se tornariam violões.
? A madeira é o material mais fantástico que existe. Dela pode-se fazer tudo: um armário, um barco, uma ponte? e os instrumentos musicais. A madeira torna-se viva quando você toca um violão. Traz vida à madeira de novo, que um dia foi uma árvore ? encanta-se Davi.
Davi começou a se familiar com a música ainda pequeno, nos cultos evangélicos que frequentava com a família, em Nova Iguaçu. Já formado em saxofone pela Escola de Música Villa-Lobos, aprendeu um novo instrumento, a flauta, o que lhe abriu portas para trabalhar com nomes como o mineiro Flávio Venturini (?Qualquer lugar que você sacudia uma árvore, caía um saxofonista?, brinca). Já o interesse pela madeira surgiu ao fazer um curso técnico de edificações, no ensino médio.
? O material de desenho na época era ainda mais caro que um instrumento. A prancheta, o banquinho… Aí, eu fazia tudo. Foi quando comecei aprender a trabalhar com madeira ? lembra.
As duas paixões ficaram de lado quando Davi foi aprovado no concurso para soldado do Corpo de Bombeiros, já que os plantões dificultavam viagens para shows e o trabalho de marcenaria.
? Tinha horas em que eu me pergunava: ?O que estou fazendo aqui??. Era um negócio completamente diferente do que eu tinha pensando para mim. Imagina água e óleo… ? explica.
A mistura entre os universos militar e musical aconteceu quando Davi conseguiu uma vaga na banda sinfônica do Corpo de Bombeiros. Ele tocaria flauta, mas com a condição de que exercesse algumas funções como soldado:
? Eu chegava mais cedo, arrumava, distribuía partituras e sentava para tocar. Quando acabava o ensaio, fazia faxina. E ainda tirava um serviço por semana no salvamento. Mas feliz da vida.
Até que durante uma licença do serviço militar, concedida a cada dez anos de trabalho, o agora sargento se deu um presente: um curso de luthier (profissional que fabrica instrumentos de corda). O mestre foi Regis Bonilha, um autodidata na arte, que atua há 20 anos.
? O bom artesão conhece o instrumento que está construindo. O músico, profissional ou não, transforma os números da matemática musical no material, no instrumento ? define o professor.
Com um exemplar de sua autoria em mãos, Davi reproduz os sons de instrumentos de sopro e percussão em ?Trenzinho caipira? e ?Alvorada na floresta tropical?, de Villa-Lobos, toca algumas cordas do violão e bate no tampo.
? O jacarandá era de uma cama de casal. Achei o ébano numa reforma no próprio quartel. E o mogno saiu de um arquivo ? enumera ele, que afina em graves e agudos pequenos pedaços de madeira colados dentro do violão.
Considerado o melhor luthier do Brasil, Shigemitsu Sugiyama usa a afinação como trunfo para suas obras ? apenas dois violões são feitos por ano e vendidos a preço de carro zero quilômetro:
? A madeira mais estável dá mais sonoridade. É preciso esperar 30 anos pelo menos. O tempo é importante e a temperatura também faz abrir o som.
Hoje, na casa do bombeiro, o único instrumento é um violão com base de papelão, feito pelo antigo professor. O primeiro saxofone, presente da mulher, foi vendido para comprar máquinas. A flauta que usa pertence aos Bombeiros, e os violões espalhados pela sala e oficina estão em construção ou com dono certo.
? Guardo um para não se dizer que aqui é casa de ferreiro ? justifica.