RIO – Quando ?Stoner?? foi lançado no Brasil em 2014, o romance veio acompanhado de um epíteto sobre seu autor, o norte-americano John Williams (1922-1994) ? o de que ele seria ?notório e oculto?, já que foi descoberto tardiamente no mundo literário. Com o lançamento de ?Butcher?s Crossing??, já não se pode dizer o mesmo. Depois da boa repercussão de ?Stoner??, eu diria até que existe alguma expectativa em torno do romance.
Este novo livro, além do mais, guarda semelhanças com o primeiro. A narrativa linear, sempre em terceira pessoa, que jamais se confunde com a visão de mundo dos personagens e se atém aos mínimos detalhes de cada cena (a ponto de descrever o movimento do pomo-de-adão de um personagem enquanto ele bebe de um só gole um copo de uísque), é marcante nos dois romances. Em ambos os casos, prepondera certa busca existencial dos protagonistas, traço que não deixa de ser característico da época em que os romances foram escritos ? ?Butcher?s Crossing?? foi publicado originalmente em 1960, e ?Stoner??, cinco anos depois. De diferentes formas, os dois livros tratam também de um mundo de iniciação e rivalidades masculinas.
No entanto, são as diferenças em relação a ?Stoner?? que melhor definem este recém-lançado romance de Williams. Se antes o cenário era o ambiente civilizado de uma universidade a partir dos anos 1920, agora a história se passa nas redondezas desse lugar inóspito que dá nome ao livro ? um vilarejo perdido em Kansas ? nos anos 1870. De certo modo, o romance é também sobre esse estranho lugar, destino do jovem Will Andrews, acadêmico de Harvard que abandona o terceiro ano de Direito em busca de ?uma forma mais verdadeira de si mesmo?, como diz o narrador nas últimas linhas do livro.
Quer dizer, ?Butcher?s Crossing?? pode ser pensado como um ?romance de formação?, assim como ?Stoner??, mas agora se trata principalmente de ?literatura de viagem?. Desde a indicação do título, a noção de deslocamento é fundamental para entender o livro ? afinal, crossing pode significar cruzamento, passagem, encruzilhada.
Neste vilarejo repleto de serviços precários, putas tristes e caras durões, Andrews acaba se juntando a três deles e parte em direção a uma viagem (a princípio arriscada, o que se confirma depois) de caça a búfalos, com o objetivo de vender suas peles e faturar alguns mil dólares. É a partir desse momento que Andrews inicia um lento e revelador embate com a natureza, com a selvageria e, sobretudo, com ele próprio: a falta de água pelo caminho, a fúria dos animais, o inverno rigoroso no meio das montanhas e a matança descabida (são abatidos e esfolados quase cinco mil animais) fazem com que Andrews aos poucos esqueça quem ele foi. ?Não sentia mais nada?, diz o narrador a certa altura.
Em vários momentos, essa aniquilação da identidade do personagem ganha forma no romance: seja na descrição da imundície de seu próprio corpo ou em outras transformações pelas quais Andrews passa ? seu rosto, por exemplo, vai se tornando áspero e estranho ao toque.
METÁFORA DE INICIAÇÃO SEXUAL
Quanto a isso, uma das cenas mais reveladoras é quando o personagem precisa enfiar os braços dentro das vísceras de uma búfala recém-abatida, ainda quentes ? ademais, uma metáfora de iniciação sexual, já que Andrews ainda não havia se relacionado com uma mulher. Ele conclui depois que não fugiu da situação como uma ?garotinha enjoada? por causa do ?fedor das tripas?, e sim por conta do ?choque? sofrido ao ver ?um pedaço de carne inerte, destituído de si mesmo (…)?. Ou seja, o personagem sentiu que ele próprio se destruía ali.
Por esta série de confrontos, alguns críticos vêm comparando o romance de Williams ao clássico de Joseph Conrad, ?O coração das trevas??, em que Charles Marlow conhece ?o horror, o horror?, e poderíamos lembrar dos filmes de Werner Herzog: neles, os homens desafiam a natureza como forma de enfrentar ? eles próprios ? seus limites. Em todos os casos, a ideia moderna de civilização se transforma em poeira, para usar uma imagem do romance.
Enfim, ?Butcher?s Crossing?? é também um romance de certo fôlego e de ritmo lento, como acontece com o trajeto destes personagens rumo às montanhas rochosas do Colorado, e que exige alguma dedicação. Mas a rigor, diferentemente do que ocorre na trama, como se verá, a viagem compensa no final.
*Victor da Rosa é crítico literário
?Butcher?s Crossing??
Autor: John Williams
Editora: Rádio Londres
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza
Preço: R$ 59,90
Cotação: Ótimo