RIO – Elas não têm um endereço físico, mas seus objetivos são tão concretos quanto a
sua capacidade de mobilização, que pode ocorrer em qualquer lugar do país. Foram
se reunindo aos poucos, estimuladas pela desconfiança na crença generalizada de
que, no Brasil, há poucas mulheres interessadas em escrever e pensar sobre
cinema. Quando finalmente fizeram sua primeira manifestação pública, durante um
seminário na 20ª edição da Mostra de Tiradentes, no final do mês passado, já
batizadas oficialmente como Elviras ? Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema, o
grupo contava com 68 integrantes, das mais diferentes faixas etárias e regiões
do país.
? O objetivo do coletivo é dar
visibilidade a críticas de cinema e pensadoras da atividade cinematográfica ?
esclarece a cientista social carioca Samantha Brasil, 37 anos, curadora do
Cineclube Delas, no Tempo Glauber, no Rio, cofundadora do grupo. ? Assim como a
atividade cinematográfica em si, a crítica ainda é um campo dominado pelos
homens. Nosso desejo é inserir essas pensadoras em festivais, seja como
críticas, curadoras, juradas ou debatedoras e, eventualmente, em jornais,
revistas e sites. Quem sabe até estimulá-las a produzir o seu próprio
veículo.
O movimento que levou à criação do
Elviras começou a ser articulado em meados do ano passado, quando a jornalista
brasiliense Cecília Barroso, 42 anos, foi chamada para fazer parte da equipe de
assessores de imprensa do festival Olhar de Cinema, de Curitiba. Cecília, que é
editora-chefe do site ?Cenas de Cinema?, no ar desde 2001, logo percebeu que o
número de jornalistas e de críticos convidados para cobrir a mostra paranaense
ou integrar suas mesas de debate era majoritariamente masculino.
? Sugeri à organização que
convidasse mais críticas e jornalistas mulheres. Disseram-me que não havia, ou
que não conheciam. Mas como assim? Eu mesma conhecia várias ? lembra Cecília. ?
No mês seguinte, procurei a Samantha, com quem já havia conversado antes sobre o
problema. Então resolvemos criar um grupo no WhatsApp para discutir o caso,
primeiro com amigas que, por sua vez, chamaram outras, e assim por diante.
Levamos a questão para alguns dos festivais que frequentamos ao logo do ano, em
encontros informais. O passo seguinte foi encontrar um nome e criar uma página
no Facebook, que é o nosso canal de troca e de discussão.
O nome do coletivo é uma homenagem a Elvira Gama, primeira brasileira a
escrever sobre a imagem em movimento. Sob o pseudônimo de Edisonina, Elvira foi
titular da coluna ?Kinetoscópio literário?, publicada no ?Jornal do Brasil?
entre 1894 e 1895, e criada semanas depois que a técnica de projeção de imagens
chegou ao Rio, então capital da jovem República. Também poetisa, Elvira
trabalhava em um ambiente tipicamente masculino, o que deu um maior simbolismo
ao seu pioneirismo. A história de Elvira foi resgatada pela professora de cinema
gaúcha Ivonete Pinto, 55 anos, com a ajuda de pesquisadoras mineiras.
Sócia fundadora da Accirs
(Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul) e da Abraccine
(Associação Brasileira de Críticos de Cinema), Ivonete é única mulher da equipe
de editores da revista ?Teorema?, dedicada à reflexão cinematográfica. Para o
seminário ?As mulheres na crítica: Cenário brasileiro?, apresentado pelas
Elviras em Tiradentes, ela levou um levantamento sobre a presença de mulheres
nas associações de críticos do país. Os números sugerem que a falta de espaço
para as mulheres começa dentro das próprias entidades: dos 94 sócios da
Abraccine, por exemplo, apenas 19 são do sexo feminino.
? Mas é preciso lembrar que a
natureza do coletivo é diferente da de uma associação de críticos. As
candidatas, indicadas por nós ou não, passam por um processo de seleção e
avaliação de trabalho. Mas trabalhamos sobre dois vieses: dar visibilidade às
que já trabalham na área e formar novas pensadoras. Em nenhum momento desejamos
que vire um grupo de ativismo de gênero ? alerta Ivonete, que teve péssimas
experiências com grupos feministas no passado. ? Nos anos 1980, cheguei a
participar de um grupo de teatro chamado Tênias. Saí porque não queriam homens
no grupo. Sempre fico muito com um pé atrás com esse tipo de radicalismo burro.
As Elviras dizem que a
participação mais ativa da mulher na crítica cinematográfica é uma reivindicação
antiga de diretoras e produtoras de cinema.
? No último Festival do Rio, a
diretora Eliza Capais, de ?O jabuti e a anta?, chegou a dizer que, como
realizadora, sentia falta de ter os filmes dela analisados por críticas
mulheres. E ela tem razão porque, cá entre nós, tem muito crítico homem por aí
que não entende de nenhum dos dois gêneros ? ri a jornalista e documentarista
paulista Flávia Guerra, 39 anos. ? Falando sério: há a necessidade de um olhar
feminino para alguns temas, sim. Não o olhar de mulherzinha. A verdade é que as
mulheres são mais sensíveis a determinados temas explorados por uma diretora
mulher. Mais do que trazer a visão feminina, buscamos a diversidade e a paridade
de olhares.
Como qualquer grupo heterogêneo, o
Elviras também está sujeito a conflitos internos. O mais curioso deles foi
gerado pela lista dos 10 melhores filmes estrangeiros lançados ao longo de 2016,
eleitos em votação pelas 68 integrantes do coletivo. A seleção tem de tudo, do
drama lésbico ?Carol?, de Todd Haynes, ao thriller ?Julieta?, de Pedro
Almodóvar, passando pelo épico ?O abraço da serpente?, de Ciro Guerra, à ficção
científica ?A chegada?, de Denis Villeneuve. O que tirou algumas sócias do
sério, no entanto, foi a inclusão do suspense ?Elle?, de Paul Verhoeven, e do
faroeste ?Os oito odiados?, de Quentin Tarantino.
? Teve sócia que achou um absurdo,
numa votação feita por mulheres, um filme como ?Elle? ficar entre os 10 melhores
do ano. Porque o acham misógino, por representar a figura feminina de forma
degradante. Outras amam o filme, porque o veem como uma belíssima e complexa
construção de personagem, fora dos estereótipos. O debate em torno do filme do
Tarantino não foi tão acalorado, mas a escolha chegou a deixar muita gente
incomodada ? lembra Cecília. ? Houve muito debate, queixas, mas prevaleceu a
ideia de que somos um coletivo de críticas, e não um coletivo feminista, que
quer incluir e não excluir visões.