?Tenho 57 anos e nasci em Bilbao, País Basco. Comecei a lidar com vítimas de
tortura em meados de 1980. A partir de então, passei a me interessar pela saúde
mental de sobreviventes de conflitos e desastres. Trabalhei no caso dos 43
estudantes desaparecidos no México e nas comissões da verdade de Peru, Paraguai
e Equador.?
Conte algo que não sei.
Não se pode entender o impacto da violência nas
categorias psiquiátricas habituais. Muitas vítimas dizem que estão ficando
loucas, mas é preciso fazê-las entender que estão tendo reações normais a
experiências anormais. Os acontecimentos que as atingem têm dimensão coletiva,
muitas vezes uma causa social e política. Para ajudar, temos que entender o
significado do ocorrido. Os sobreviventes precisam do reconhecimento do que
estão vivendo.
Quanto tempo dura o acompanhamento a uma
vítima?
Às vezes, a violência continua tão forte no ambiente que não há maneira de
continuar o trabalho. São processos longos, porque precisam gerar um espaço de
confiança, o que é muito difícil nesse contexto. O primeiro impacto da violência
é o medo: de falar, de ser discriminado, de se machucar, de denunciar. Quando
foi outro ser humano que o feriu, isso quebra o sentido da confiança, que é
fundamental para falar do que aconteceu. Às vezes, um trauma tem uma dimensão
coletiva muito forte, mas não há espaços sociais para reconstrução. Se é assim,
o caso se torna algo de que não se pode falar, vira uma história silenciada. O
impacto não pode ser uma coisa que se esconde debaixo da mesa, mas parte de um
processo de construção. Se não há espaço para assimilar, o comportamento do povo
fica determinado por aquilo. O trauma ata a experiência da vítima ao impacto do
vivido e não há jeito de separar os dois.
Como superar o trauma?
Existem coisas que não podem ser reparadas. O trauma é uma ruptura na
continuidade da vida: há um antes e um depois na trajetória de quem passa por
isso. Então, a vítima pode querer esquecer o que houve, mas é preciso aprender a
viver com o que aconteceu, sem ficar dando voltas na situação. Nada vai devolver
a vida ao morto, apagar a dor da tortura e os anos em sofreu. Mas, se a vítima
tem capacidade de recuperação, vai assimilar a experiência e transformar sua
vida. A recordação precisa ajudar na recuperação.
Quanto é importante ver a justiça ser feita?
A justiça é uma dignificação para a vítima e ajuda a reconstruir a
convivência. Há uma responsabilidade política do Estado na atenção aos
sobreviventes. Porque, se o que se impõe é a impunidade, a vingança vem como
opção.
Como você lida com o que escuta e vê em sua profissão?
É duro, psicologicamente, para mim também, e isso é
importante. Sem empatia, não há transformação. Mas é preciso processar isso.
Escrevo como forma de processar essa dor. E também recebo muitas coisas das
pessoas com quem trabalho. Há dor, mas muita aprendizagem.
Pode falar sobre a sua experiência no Brasil?
Estive no Brasil entre 2006 e 2008 para fazer um trabalho com vítimas das
chacinas da Candelária, de Vigário Geral, Acari, Queimados, Via Show e Nova
Brasília. A violência nas favelas parece uma guerra em várias maneiras, pelo
controle do tecido social e do território. O processo foi parecido com outros em
países da América Latina, de como abrir espaços sociais de confiança, de
palavra, e não de poder. Porque são dores muito guardadas. As vítimas se
estigmatizam e se culpabilizam frequentemente. Muitas vezes, a culpa ocupa o
espaço do sentido.