Na Floresta da Tijuca, a onça há mais de século desapareceu. Lobo nunca existiu. Mas um predador cada vez mais numeroso extermina a já ameaçada fauna dali. Da paca ao tatu, cutia sim, nenhum animal silvestre escapa dos cães que vagam pela floresta e caçam em matilhas. O problema é tão grave que há um estudo em curso no Parque Nacional da Tijuca (PNT). E não é apenas lá. Biólogos alertam que o cão doméstico se tornou o principal predador da vida silvestre no Brasil.
Os cães, nem todos sem dono, invadem unidades de conservação e matam animais muito maiores do que eles, como antas e veados, adverte a bióloga Isadora Lessa. A tese de doutorado de Isadora na Universidade de Brasília (UnB) investiga o impacto dos cães no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (Goiás), no Cerrado. Links antropoceno
? Na semana passada, por exemplo, dois cachorros mataram uma anta. O cão é um predador extremamente eficiente e, de longe, o mais abundante no Brasil. As pessoas temem as onças. Deveriam temer os cães. No Parque Nacional de Brasília há matilhas com até 20 animais, vários deles voltaram a um estado selvagem ? adverte ela, uma das autoras de um estudo recém-publicado sobre os danos causados por cães domésticos em áreas protegidas em todo o país.
FERAIS, ERRANTES, PERIGOSOS
Autor de um dos primeiros estudos sobre cães domésticos em florestas, Mauro Galetti, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, é categórico sobre os riscos:
? O cão doméstico é o predador dominante nas áreas silvestres do Brasil. Ele não só mata diretamente quanto transmite doenças. Na reserva de Santa Genebra, no estado de São Paulo, os cães extinguiram os veados. A situação está fora de controle e não há solução à vista. Precisam ser capturados ? salienta Galetti.
A transformação do cão doméstico em selvagem é obra daquele que se autoproclamou o seu melhor amigo, o ser humano. Matilhas de cães domésticos caçadores são um fenômeno que ocorre em outras partes do mundo, e mais um sinal de desequilíbrio do Antropoceno, a era dos homens.
Segundo cientistas, a maioria dos cães domésticos que caçam em florestas tem donos. Mas estes os criam soltos. Passam dias a perambular fora de casa e ninguém se importa se comem, se estão doentes ou por onde andam. Quase nunca são castrados e se reproduzem livremente. Alguns são animais abandonados pelos mais variados motivos, verdadeiros cães sem dono. Alguns voltam a um estado que a ciência chama de feral. Isolados dos humanos, se reproduzem na floresta e adotam um comportamento totalmente selvagem. A maioria, porém, é o que os pesquisadores chamam de semisselvagem. Eles não temem o homem e, por isso mesmo, são os mais agressivos. Podem ir para a casa de um dono buscar abrigo e usar a floresta como área de caça. Cães são ótimos caçadores. É só lembrar que o lobo e ele são a mesma espécie: Canis lupus e Canis lupus familiaris, respectivamente. Além disso, como o homem, se adaptam a qualquer ambiente e são resistentes.
? O problema é gravíssimo e ignorado. O cão é um hiperpredador porque tem uma população muito maior do que aquela que o meio ambiente pode suportar. Ele mata não apenas para se alimentar, mas por instinto. Mata e não come. Na Ilha Grande vimos um cão de coleira matar um tatu e não comer. A natureza não suporta uma pressão desse tipo. A culpa, claro, não é dos cachorros, mas de seus donos ? afirma a professora do Departamento de Ecologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Helena Bergallo, uma das orientadoras da tese de Isadora e coordenadora do Projeto de Pesquisa em Biodiversidade da Mata Atlântica.
No estudo que ela e Isadora fizeram com outros cientistas, viram que há registro de predação por cães em 31 parques nacionais de Norte a Sul do Brasil. E a Floresta da Tijuca se tornou um microcosmo do que acontece no país. Mesmo nas trilhas mais ermas e de acesso mais difícil há cães caçando. Alguns têm sido flagrados pelo trabalho pioneiro da coordenadora de pesquisa do PNT, Katyucha Von Kossel de Andrade Silva, cuja tese de mestrado investiga o impacto dos cães nos animais do parque. Ela espalhou dezenas de armadilhas fotográficas pelo Setor Floresta. E não para de flagrar cães.
? Alguns são ferais. Mas a maioria é errante, tem dono. Eles formam matilhas e são uma tragédia para os mamíferos silvestres, principalmente pacas, tatus, cotias, mas pegam até macacos. E afugentam os cachorros do mato, que são tímidos e de outra espécie. Vimos cães mesmo em lugares quase inalcançáveis da mata. Só não pudemos colocar armadilhas em zonas mais próximas à Grajaú-Jacarepaguá, mas ali o risco eram bandidos, outro tipo de perigo ? explica ela.
Katyucha reclama que moradores do Alto da Boa Vista e do Horto deixam seus cachorros soltos. Lamenta também os animais abandonados.
? O cachorro adoece, fica velho ou simplesmente enche a paciência do dono e este o abandona. É uma covardia e um crime. Há gente cruel que deixa os cães à própria sorte. Já vimos uma matilha que era formada por um vira-lata pequeno, um médio e um grande cego e velho ? conta.
DOENÇAS PARA HOMENS E ANIMAIS
O abandono foi o destino da vira-latinha de cerca de 2 anos capturada semana passada perto de um lago do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
? Soa surreal, mas a predação por cães é a principal causa de morte dos mamíferos silvestres do Jardim Botânico. Eles chegam pelas trilhas ou são abandonados no Horto e acabam aqui. Já enfrentamos problemas com matilhas, uma delas liderada por um poodle. Aqui são uma ameaça. Já mataram tapitis (coelhos silvestres), esquilos, tatus, pacas. Esta foi capturada antes de causar mais estragos. É mansa com pessoas, mas não com animais. O abandono de cães é um ato profundamente cruel e irresponsável ? lamenta a coordenadora do Projeto de Conservação da Fauna do Jardim, Gabriela Heliodoro, cujo mestrado investiga as doenças transmitidas pelos cães domésticos à fauna da Mata Atlântica.
Segundo ela, os cães ferais e semisselvagens se tornam transmissores de raiva, cinomose, leishmaniose, parvovirose, toxoplasmose entre outras doenças.
? Como não são vacinados, eles se tornam um reservatório de raiva ? alerta ela.