RIO ? Medo e revolta. Estas são as palavras usadas por quem, de um jeito ou de outro, sentiu na pele a tensão causada pela tentativa de golpe que abalou a Turquia na madrugada de sexta-feira para sábado. Foi embaixo de trocas de tiros, rajadas e explosões que militares, policiais e civis travaram intensos confrontos noite adentro em diversas partes da cidade. O resultado foi um cenário de caos, em que pelo menos 265 pessoas morreram e 1.440 ficaram feridas. Mas as testemunhas relatam que, até então, aquele parecia mais um dia comum ? até que todo o país foi pego de surpresa pelo anúncio da tomada de poder pelos insurgentes militares.
Após mais de dois anos morando em Istambul, a carioca Fernanda Gomes, de 34 anos, diz que pela primeira vez sentiu medo na cidade. À noite, ela recebeu a notícia da tentativa de derrubar o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Instintivamente, soube que deveria tomar precauções: correu ao mercado para abastecer a sua casa de água e comida. Até então, não havia sinais de que a população parecia preocupada: alguns tomavam chá nos cafés, outros conversavam e fumavam nas praças.
Mais tarde, quando foi ao banco para tirar todo o dinheiro que conseguisse da sua conta, Fernanda viu que as filas já eram enormes. Foi então que começou a crescer, nas ruas e dentro dela, o sentimento de apreensão, que se estendeu pela madrugada, mesmo no seu apartamento, que fica perto do centro histórico.
? Comecei a ouvir manifestações, pessoas nas ruas e barulhos de tiros, bombas e sirenes. Os caças sobrevoavam o meu apartamento. Nunca tinha vivido nada parecido, foi a primeira vez que senti tanto medo ? relatou. ? Na madrugada inteira, as mesquitas convocaram as pessoas a irem às ruas por meio das sirenes que, normalmente, chamam para as cinco rezas diárias. O barulho fazia a minha janela, no último andar do prédio, tremer. Fiquei muito assustada.
A surpresa e o medo também marcaram Carolina Nogueira, que chegou há dez dias na Turquia para trabalhar como modelo. A previsão dela é ficar no país por três meses. Os tiros e bombas foram ainda mais assustadores para quem não entende nada do idioma local. Ela também não teve coragem de sair de casa, mas podia ouvir os barulhos que vinham da confusão nas ruas.
? Tinham caças e helicópteros em vôos rasantes e davam a impressão de entrarem no apartamento onde moro com outras estrangeiras. Era uma grande confusão e tive muito medo ? contou. ? Consegui fazer contato com a família e tranquilizar a todos. Hoje está mais tranquilo. Ouço apenas som que me parece ser uma celebração e pessoas cantando. Mas ainda estou apreensiva com a orientação de aguardar a situação se normalizar totalmente para sair de casa.
‘ELES NÃO PODEM NOS LEVAR A DEMOCRACIA’
Esta noite histórica em Istambul foi muito diferente para os turcos que deixaram suas casas para se unir ao coro dos protestos contra o golpe militar. A reação de milhares de civis veio após os militares terem declarado que haviam tomado o poder, anunciando um toque de recolher e a aplicação da lei marcial. Em seguida, Erdogan emitiu um pedido para que os turcos se manifestassem para resistir aos insurgentes.
Nascido e criado em Istambul, Gopalk Kasim estava em um bar com os amigos quando soube pela televisão que os confrontos estavam ganhando força na praça Taksim, ponto já tradicional das manifestações populares turcas. Não teve dúvida e foi direto ao coração de Istambul para ver com os próprios olhos o que estava acontecendo. Encontrou cerca de 40 ou 60 soldados fortemente armados, que abriram fogo na direção do ar. Mas a tensão foi ficando cada vez mais alta até que as forças de segurança leais ao governo turco chegaram e também dispararam.
A partir de então, Kasim viu duas pessoas sendo feridas por tiros na perna, disparados por soldados. A multidão o empurrou e ele perdeu de vista outras pessoas que pareciam machucadas. Mas, sobretudo, ele relata ter visto a revolta dos civis contra a ameaça à democracia.
? Todos estava, contra os militares. Havia centenas deles. Havia muita raiva das pessoas, porque é inaceitável tirar nossa liberdade e ferir nossa Constituiçãp. Isso foi muito inesperado e ninguém nunca vai aceitar isso. Não podem nos levar a democracia. Não sou a favor de Erdogan, mas fui às ruas. Apesar do histórico de golpes no país, o golpe não está no gene dos turcos. Esses dias já acabaram ? disse Kasim ao GLOBO.
Neste sábado, o governo turco anunciou ter controlado inteiramente a tentativa de golpe militar. Mais de 2,8 mil militares já foram presos, em repressão ao que o primeiro-ministro do país chamou de “uma mancha negra na democracia”.