Cotidiano

As cartinhas do Papai Noel

BRASÍLIA – A recessão econômica que varreu 2016 deixou um rastro de empobrecimento pelo país. A crise abalou famílias e afetou as crianças. Papai Noel teve de lidar com pedidos inusitados e histórias comoventes em várias cartinhas enviadas pelos Correios. O GLOBO pinçou algumas e conta, por meio delas, a trajetória dos principais indicadores da economia e como sua piora ao longo do ano mudou o país e dificultou o Natal dos brasileiros. (Colaborou Renata Mariz)

carta_papai-noel-1.gifQUEDA DA RENDA E A BICICLETA DA CLARA
Ainda é muito cedo para Clara entender o porquê de o pai ter vendido sua bicicleta. Ela só tem dez anos. Durante quase todo esse tempo, a renda só crescia no Brasil. Tudo mudou em 2015. Em média, cada trabalhador passou a ter no bolso apenas R$ 1.853 em vez dos R$ 1.950 de antes. O empobrecimento continuou no ano seguinte. Como várias outras crianças brasileiras, Clara sentiu o peso da crise.
Por falta de dinheiro, ela e as irmãs perderam o brinquedo. Só restou o choro e a torcida para que o Papai Noel traga de volta a bicicleta tirada. Ela diz merecer. Só não é tão boa em matemática.
Para ela, os dados do IBGE que mostram que a renda das famílias brasileiras despencou 7,5% no ano passado não fazem tanto sentido quanto dizer que cada família brasileira perdeu mensalmente R$ 257 de uma renda de R$ 3.186 mensais. Esse dinheiro é suficiente para comprar uma bicicleta que Clara tanto quer. O problema é que a renda ainda continuou a cair em 2016 e o caminho para a bicicleta nova de Clara está ainda mais longo.

Carta de vitoria.jpgEDUCAÇÃO E O MATERIAL ESCOLAR DE VITÓRIA
Aos seis anos de idade, o pedido para o Papai Noel deveria ser brinquedo. Nada que não fosse lúdico deveria importar para Vitória. Mas como muitos pais nessa época do ano ela está preocupada com o material escolar. A crise em 2016 foi tão grave, que chegou à educação.
Sem renda e otimismo, as famílias trocaram as crianças de escola. As privadas esvaziaram-se e as públicas foram a saída para o orçamento mais apertado ou achatado pelo desemprego. Isso para quem conseguiu escola.
A garantia dada pela lei não garantiu que todas as crianças de quatro a 17 anos tivessem seu lugar no colégio. São 2,2 milhões de brasileiros que não estudam nessa faixa etária. Crianças ainda mais novas que Vitória estão numa situação ainda pior. Faltam cerca de 2,4 milhões de vagas em creches. Assim, as mães ficam presas em casa para cuidar dos filhos e não podem trabalhar.

carta_papai-noel-3 (1).gifALIMENTAÇÃO E A DOAÇÃO DE GEOVANA
A queda de renda e o descontrole dos preços no supermercado amargaram o orçamento das famílias em 2016. Sensibilizada pela fome alheia, Geovana não pediu briquedo nenhum ao Papai Noel. Quer que seu brinquedo seja revertido para uma instituição de combate à fome. No ano de 2016, a inflação continuou a reduzir a quantidade de alimento nos pratos das famílias.
Pelo menos a remarcação de preços não anda mais na mesma velocidade que tinha em 2015. Naquele ano, as contas das famílias ficaram quase 11% mais caras. Neste ano, a mordida deve ser mais contida: 6,5%, grande parte causada pela alta dos alimentos.

INDÚSTRIA E A CAMA DE YASMIN
Entre cartas de bonecas e patins, Papai Noel recebeu um pedido inusitado: Yasmin quer uma cama. Antigamente era fácil comprar uma. Havia fartura de crédito e a indústria não parava de produzir. Atualmente, as fábricas têm espaço de sobra porque trabalha-se muito menos.
No Brasil de 2016, a industria produziu 7,7% a menos do que fazia no ano anterior. Fabricou menos e vendeu menos. O comércio voltou ao mesmo patamar de janeiro de 2010, quando Yasmin tinha apenas cinco anos de idade. Ela nem deve se lembrar como era a vida quando a renda crescia, a indústria produzia e comércio vendia. Agora, é preciso apelar para o Papai Noel.

Carta das amoebas.gifTECNOLOGIA E AS AMOEBAS DE MIKAEL
Mikael pediu ao Papai Noel amoebas. A massinha maleável mal cheirosa que arrebata as crianças é só um pretexto para o desejo real do garoto: quer popularidade. A estratégia do garoto de apenas 10 anos é usar a geleca e fazer tutoriais no Youtube, ficar famoso e chegar a ter 1 milhão de seguidores.
O ano de 2016 foi dos youtubers, blogueiros, instagirls e outros tipos de personalidades virtuais. Foi neste ano que a internet chegou a 50% das casas no Brasil. A audiência mudou e influenciou a economia. Novos negócios surgiram e envolvem cada vez mais as crianças.

carta_papai-noel-4 (1).gifPOBREZA E A TOLERÂNCIA DE MARIANA
Com apenas nove anos de idade, Mariana fez pedidos que poderiam surpreender o Papai Noel. Ele quer paz, igualdade e tolerância. Uma combinação entre recessão econômica e crise política piorou a situação financeira das famílias e foi ainda mais cruel com os mais pobres.
A parcela dos 10% mais pobres da população teve redução de 7,1% da renda do trabalho. Entre os 10% mais ricos, a queda foi de 5,9%. Por isso, o pedido de Mariana é pertinente.
A menina que carrega no nome o peso da maior tragédia ambiental no Brasil também pede respeito aos rios. Que Papai Noel atenda seu pedido.